Cap 5

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Acordo com uma dor de cabeça desgraçada e um enjoo terrível. Olho para os lados e Daniel está de pé na sacada, falando no celular. Pego meu relógio, que deixei em cima da mesinha ao lado da cama para olhar as horas, e já passam do meio-dia. A essa hora eles  devem ter dado falta de mim no acampamento. Eu me lembro de ter sonhado com Vladimir me chamando de volta, dizendo que me amava e que queria ficar comigo. Eu mal saí de lá e já estou com saudades, mas mesmo que eu queira voltar, isso não será mais possível. Eles nunca me aceitarão de volta depois da vergonha e o desgosto que eu lhes fiz passar. Será que Vladimir também está sentindo  minha falta? Por que eu não consigo parar de pensar nele?

— Ei, finalmente acordou belo adormecido?! — Daniel termina a ligação e anda até uma pequena mesa que há no meio do quarto com duas cadeiras, se sentando em uma delas. — Vem comer, você deve estar com uma ressaca daquelas! Eu fui até a padaria e trouxe café e algumas coisinhas, não sabia o que você gosta de comer e você estava dormindo feito uma pedra, não quis te acordar pra perguntar.

— Nossa, não precisava de tanta gentileza! — me sento na beirada da cama, ajeito minha camisa e meu cabelo e só então me levanto indo até ele, sentando ao seu lado.

— Você deve estar com dor de cabeça e enjoo. Toma aqui esse medicamento, vai te ajudar a melhorar. Eu sempre tomo ele quando passo dos limites — ele diz o dando para mim.

— Obrigado — sorrio surpreso. Daniel é mesmo uma boa pessoa. Tomo o remédio sem fazer cerimônia. — Eu não consigo comer nada agora, então só vou tomar café, tudo bem?

— Certo. Quem é Vladimir? —ele pergunta enquanto dou um gole no café que ele trouxe para mim.

Arregalo os olhos:

— Vladimir?

— É, você ficou chamando esse nome a noite toda. É seu namorado?

Abro um sorrisinho sem graça. Se ele souber que na minha comunidade cigano não namora, cigano casa, e só existe relacionamentos heterossexuais, o que ele achará disso?

— NÃO, eu não tenho namorado.

— Olha, eu não tenho nada a ver com sua vida, a gente mal se conhece, mas eu preciso te dizer que surgiu um imprevisto e eu vou ter que voltar pra São Paulo, minha filha está com problemas na escola, e...

— Filha? — o interrompo curioso — Você tem filha? Mas como... Isso é possível?

Ele ri provavelmente da minha ignorância.

— Se você quer saber se fui eu que engravidei, sim, fui eu, eu já fui casado antes de me transicionar, daí nós tivemos uma filha e depois eu decidi me revelar trans. Nós nos separamos e dividimos a guarda dela. Mas, se você também quer saber se é possível homens trans engravidarem, é sim, pelo menos aqueles que ainda têm o sistema reprodutor útero-ovariano, na maioria das vezes é só dar um tempo nos hormônios que a fecundação acontece. Mas eu tirei o útero logo depois que fiz a retirada das mamas.

— Desculpa, eu não sabia disso...

— Tudo bem, eu não me importo de te esclarecer, afinal o conhecimento liberta, não é? Mas enfim, eu só quero saber o que você está pensando em fazer da sua vida? Desculpa se estou sendo muito intrometido, mas a partir do momento que você bateu na minha porta, acho que eu tenho o direito de saber.

Essa é uma ótima pergunta. Eu não faço ideia. Eu só precisava fugir daquilo tudo e acho que não pensei muito bem nas consequências.

— Er, eu não sei... Não sei se tenho para onde ir... — confesso.

— Quer me contar o que aconteceu? Você saiu de casa?

Se eu quiser que Daniel seja meu amigo e confie em mim, eu terei que contar a verdade para ele.

Beba deste cálice (CIGANO/GAY)Onde histórias criam vida. Descubra agora