Vladimir
Não sei ao certo o que eu estou fazendo. Só sei que peguei um pedaço de galho quebrado, o analisei e comecei a lapidá-lo com meu canivete. A lapidação é um processo que requer talento e muita paciência, mas é gradativo e extremamente doloroso. Por isso, talvez, a maioria das pessoas evitem a todo custo se lapidarem, adquirirem mais conhecimento, expandir a mente e reflorescer, é mais fácil continuar na mesmice, preso em nossos casulos mentais, sentimentais e materiais, assim ninguém se machuca. Ramon rompeu essa barreira e alçou voo e eu não tive coragem de sequer tirar as minhas asas do lugar, se é que elas existem... Três meses... Já fazem três meses que eu me casei e ele se foi.
Sou retirado bruscamente dos meus pensamentos quando Iaskara aparece tocando em meu ombro e sentando ao meu lado no tronco de árvore.
— Oi. Você está aí afinal.
Ela me faz lembrar que depois do almoço eu simplesmente saí andando e vim parar aqui.
— Está precisando de alguma coisa?
— NÃO, mas seu pai vai ir fazer negócios com um fazendeiro amigo do senhor José e eu pensei que você iria com ele — ela está se referindo ao homem que nos vendeu parte de suas terras.
— NÃO estou me sentindo bem. Ia mais atrapalhar do que ajudar. Ele está querendo vender o Ferrugem e o Pintado pra esse cara, mas eu já disse que não acho uma boa ideia. Eles são nossos melhores machos.
— Seu pai é mais velho que você, ele deve saber o que está fazendo, deve saber o que é melhor. Mas o que você tem?
— NÃO é nada demais. Deve ter sido a comida que não me caiu bem.
— Está dizendo que eu cozinho mal?
— NÃO, claro que não. Eu só fico um pouco chateado com o fato de eu não ter muita autonomia pra certas decisões... Meu pai pode ser mais velho que eu, mas não acerta sempre.
— NÃO fica assim, talvez ele te dê mais liberdade quando ganhar mais confiança no seu modo de trabalhar.
— É... — concordo apenas para encerrar o assunto. Sei que posso fazer o que for que ele nunca vai reconhecer nenhum feito meu, e tudo o que eu decidir não será bom o suficiente. Discordar de uma pessoa mais velha é sempre considerado uma afronta. — Vou dar uma olhada nos animais, mais tarde a gente se vê. Dou um beijo na testa dela enquanto ela espera que eu dê na boca e me afasto.
Só volto a noite como sempre faço, acho que é para pensar em Ramon sossegado, sem ninguém por perto para me incomodar ou evitar Iaskara principalmente agora que a mãe dela está morando conosco em nossa tenda. Como ela é uma mulher viúva mais velha, não é bem visto que ela more sozinha. A janta já está pronta e eu como sem falar nada. Depois tomo um banho e me deito. Eu sei que eu estou sendo um péssimo marido e um péssimo genro, mas não tenho ânimo para mais nada desde que Ramon se foi e depois que me casei meu pai vive me pressionando para honrar minhas calças. Estou quase pegando no sono quando Iaskara aparece.
— Você está bem?
— Sim, só cansado.
— Parece que a presença da minha mãe te incomoda — minha vontade é de dizer que de certa forma sim porque o fato dela estar morando aqui me lembra a todo momento de que Ramon se foi.
— De onde você tirou isso? É claro que não. Eu adoro sua mãe, a dona Florência é uma ótima pessoa.
— É que você nunca parece estar satisfeito com nada. Reclama de tudo desde que nos casamos. Estou começando a achar que você quer se separar de mim.
— NÃO, você está pensando um monte de baboseiras. Por que não volta pra escola, pra distrair um pouco sua cabeça?
— Eu não quero voltar pra escola. Cansa sabia? Cuidar da tenda sozinha, e além do mais logo nós teremos nossos filhos e aí que eu não vou ter tempo para nada mesmo.
— NÃO sei se quero ter filhos. Acabamos de nos casar. Deixa pra pensarmos nisso daqui uns cinco, ou seis anos...
— NÃO dá pra frear a natureza. Nosso filhos virão quando for a hora.
— E se a gente evitar? Podemos usar camisinha. Você pode tomar um anticoncepcional.
— Isso vai ser impossível Vladimir! — Iaskara se levanta um pouco alterada, disparando: — Porque eu já estou gerando um filho seu!
— Como? Quando? — interrogo desnorteado.
— Como? Que pergunta mais estúpida, Vladimir. Isso é a coisa mais natural do mundo. Eu estava esperando o momento certo de te contar, mas você sempre está com a cabeça cheia.
Fico paralisado por alguns instantes, tentando assimilar que eu serei pai, na verdade eu já sou tendo em vista que uma criança já cresce dentro do ventre de Iaskara. Isso definitivamente não fazia parte dos meus planos, porém, não há outra alternativa a não ser me conformar.
— Essa criança será muito bem-vinda, não se preocupe — é o que digo sem mostrar muita emoção e me deito virando as costas para ela.
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Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomansaRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.