Em questão de minutos a garoa dá lugar a uma chuva torrencial. Mesmo assim continuo parado em frente ao túmulo do Jacobino, onde há cerca de quarenta minutos ele foi enterrado. Estava tão dormente com o choque da morte dele que sequer trouxe guarda-chuva. Erro meu sabendo bem que o clima está chuvoso. Eu era o único que sabia que ele estava gravemente doente, mas ter que lidar com a perda de alguém querido é sempre algo inesperado e doloroso. O velório que aconteceu na capela do cemitério durou a madrugada inteira, com direito a leitura da bíblia e sermão do padre, e a despedida final aconteceu às dez da manhã. Eu sou o único que permaneci aqui. A família dele está mais preocupada em saber sobre o testamento. Acho até que eles ficaram extremamente aliviados quando toda a cerimônia terminou e o que restou dele foi tomado pela terra. Exceto os amigos e funcionários, que gostavam de verdade dele, mas que tiveram que retornar aos seus afazeres. Pelo menos Jacobino foi em paz. Ele já estava ciente da sua partida. Foi enterrado ao lado de seus pais e avós como desejava.
Suspiro fundo. Jacobino era um homem extremamente católico, apesar de ser discriminado constantemente pelo fato de ser Kalon e gay, ele não deixou de seguir os preceitos da religião e nunca pensou em abandonar sua fé. As pessoas da cidade o respeitavam porque ele era um empresário muito fluente na região, dono de muitas terras, da plantação de uvas e da vinícola, oferecendo muitas oportunidades de emprego para os habitantes.
Me lembro como se fosse ontem quando eu conheci Jacobino. Eu estava me sentindo coadjuvante da minha própria história e ele me ajudou a me tornar um protagonista. O homem foi meu leal companheiro e meu mentor. Tudo o que sei hoje é o que aprendi com ele. Há 23 anos, quando Daniel me pediu para ir passar alguns dias no apartamento do Ícaro até que ele resolvesse a situação com a filha dele sobre o fato dela estar apaixonada por mim, eu não fui. Quando eles me mandavam mensagens e me ligavam para saber onde eu estava, se eu estava bem e por que eu tinha sumido, eu simplesmente ignorava, até que quebrei o chip e nunca mais soube deles nem eles de mim. Eu não queria mais fazer parte de algo no qual eu sentia que seria colocado de lado a qualquer momento. Vaguei por vários dias por São Paulo, sobrevivendo do meu artesanato, dormindo em pocilgas, foi aí que eu me lembrei da comunidade Kalon, a qual Jacobino pertence e que sempre que passávamos pelo estado do Paraná quando éramos nômades, nos acolhia de bom grado. Ao contrário da minha comunidade Kalon, eles são pessoas de posses e prestígio social devido a sua situação financeira que vem da época do Brasil colônia, ciganos portugueses que se instalaram por aqui e ganhavam a vida como comerciantes de escravos e lucraram muito com isso. A verdade é que quem herdou toda essa fortuna foi Jacobino que é filho único e que a manteve só porque soube como administrá-la bem, seus outros familiares não passam de parasitas. Quando cheguei aqui ele me deu emprego na plantação de uva, depois que peguei o jeito, ele me passou pra vinícola. Jacobino se afeiçou a mim como um pai ao seu filho, mas todo mundo pensa que nós tínhamos um envolvimento amoroso. Foi um escândalo na época, um homem mais velho envolvido com outro homem mais jovem. Deixamos que pensassem assim. Principalmente quando Jacobino me pediu em casamento. A intenção dele com isso era que todo seu patrimônio passasse para meu nome quando ele morresse, porque ele não queria deixar nada para sua família. No início eu achei essa proposta uma loucura, mas depois que ele me contou que tinha uma doença incurável no coração e passível de transplante, e que só confiava em mim para cuidar de tudo quando ele partisse, eu pensei melhor e concordei. Não porque eu estava interessado no dinheiro dele, mas sim porque eu o amava como amava meu pai, e ainda amo.
Preciso reagir. Eu fiz uma promessa para Jacobino de cuidar dos seus negócios, manter o emprego dos seus funcionários e jamais permitir que a família dele gaste com coisas fúteis porque eles podem me levar a falência. Respiro fundo, e dou as costas levando uma parte dele comigo, especialmente seus ensinamentos e sua ternura.
Caminho para fora do cemitério e monto no cavalo de raça que era de Jacobino e que ele também deixou para mim. Cavalgo com tranquilidade de volta para a propriedade e encontro com Gaspar na entrada do estábulo.
- Oi patrão, seu Eustáquio pediu pra te avisar assim que você chegasse que está todo mundo lá na sala esperando por você pra lerem o testamento.
Desço do cavalo arfando.
- Obrigado Gaspar. Cuida bem dele, hein? - peço me referindo ao cavalo de Jacobino.
- Pode deixar.
Adentro a mansão pela porta da cozinha, agradecido por Gaspar ter me avisado que o pessoal está na sala me aguardando.
- Oi, seu Ramon. Está com fome? Quer algo pra beber? - Raquel a cozinheira pergunta assim que me vê, solícita como sempre.
- Não, Raquel. Eu preciso tomar um banho e trocar essa roupa molhada. Não fala pra ninguém que eu cheguei, depois eu desço e me resolvo com eles.
- Seu pedido é uma ordem - ela sorri gentil.
Correspondo e saio andando de fininho pela casa para que ninguém me veja ou me ouça. Estão todos na sala de estar, conversando e bebendo com o tabelião.
Demoro no banho me preparando psicologicamente para enfrentar os familiares de Jacobino quando eles souberem que ele não deixou nada pra eles. Isso vai dar uma baita de uma confusão.
Termino depois de umas duas horas debaixo da ducha e para me arrumar e enfim desço para a sala de estar com o cabelo úmido.
Todos me encaram como quem quer dizer que eles não tem todo o tempo do mundo para me esperar, porque querem gastar logo a grana que o Jacobino deixou para eles.
- Ramon, o tabelião já ia embora, mas eu não deixei. Ele tem outros compromissos - Eustáquio, o tio de Jacobino e irmão mais novo do pai dele, murmura tentando esconder o ranço que ele tem de mim.
- Eu estava todo molhado. Por isso demorei.
- Você e essa mania de andar por aí a cavalo, Ramon! - Virgílio, o único filho de Eustáquio e primo de Jacobino reclama. - É igualzinho a Jacob.
Abro um sorrisinho chocho para não parecer mal-educado, mas não estou com paciência para as chatices de Virgílio, embora ele esteja certo, desde que saí de Minas para ir para São Paulo, e vim parar no interior do Paraná, pude retomar meu gosto por cavalos e montaria.
- Então vamos ao que interessa - digo me sentando na poltrona que era de Jacobino e Eustáquio me fixa com raiva, como se eu estivesse ocupando o lugar que é dele por direito.
O tabelião limpa a garganta um pouco constrangido porque ele melhor do que ninguém sabe o que está escrito no testamento de Jacobino. Por isso ele fez questão de ler na minha presença.
- Bom, - ele inicia tremendo, tentando segurar um único papel que ele retira da sua maleta. - "Venho por meio desta carta anunciar que Ramon será meu único herdeiro." - ele lê e olha para os outros. Seguro uma risada da expressão de espanto dos membros da família Costa.
- Como assim? Que merda de testamento é esse? - Virgílio vocifera indignado. - Termina de ler aí... Deve ter mais alguma coisa!
- Não, não tem nada. É só isso. Ramon é o herdeiro de toda fortuna do Senhor Jacobino, vosso tio - o tabelião reforça gaguejando, com medo de ser espancado pelo Virgílio.
- Isso só pode ser brincadeira do Jacobino! - Eustáquio surta.
- Bem, já que o testamento foi lido, eu vou me retirar. Estou cansado do velório - comunico. - Ah e não me esperem pro almoço. Estou sem fome. Talvez eu desça pro jantar. Obrigado Heitor - agradeço ao tabelião que assente e dou as costas sentindo os olhares de ódio da família de Jacobino me fuzilando. Acho que se eles pudessem me matariam agora mesmo, mas eles são espertos demais para deixarem testemunhas.
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Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomanceRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.