O tempo ao lado de Daniel passa muito rápido, porém cada minuto tem seu grau imenso de intensidade. Nesses três meses em que eu estou morando com ele, tenho visto, ouvido, sentido e vivido coisas que eu jamais imaginei que viveria e se eu soubesse que havia todo um mundo novo e empolgante para explorar, teria deixado minha comunidade bem antes, demorei muito para me permitir viver plenamente o que a vida tem para oferecer, e só bastou eu pular o muro que existe entre minha etnia e a cultura dos gadjés.
Em poucos meses, Daniel me ajudou a trazer a tona minha existência. Fiz meus documentos, tirei carteira de motorista e estou oficialmente trabalhando com artesanatos. Estamos cada vez mais íntimos, se é que isso é possível. É como se tivéssemos nos tornado um livro aberto um para o outro e o lido minuciosamente até o final. Tenho certeza que já sabemos tudo um do outro, literalmente. Daniel me contou que não tem mais contato com sua família desde que ele se separou do pai de sua filha. Ele havia se assumido lésbica na época, mas depois se entendeu como homem transgênero e fez a transição. Ele me disse que a maioria dos homens e mulheres trans de sua época se assumiam homossexuais porque não sabiam explicar exatamente quem eram, até que com ajuda de especialistas e informações, se entenderam e aprenderam a diferença entre identidade de gênero e sexualidade, sendo assim podem haver trans de diversas orientações sexuais. Felizmente a filha dele compreende bem sua situação e se dá super bem com ele. Já com o pai dela, eles mantêm uma relação respeitável por causa da garota, já que ele também não entende muito bem o fato do Daniel ser trans e gay. Porque segundo a convicção dele, se Daniel queria se relacionar com homens não tinha porque se "tornar" um, mas eu aprendi que uma coisa não tem nada a ver com a outra. Ele si reconhece como homem e sente atração romântica e ou sexual por outros homens.
Bebo mais um gole da cerveja e analiso a boate lotada onde estamos. Daniel está na pista dançando no meio de um monte de pessoas amontoadas enquanto eu estou sentado no bar. De onde estou dá para acompanhá-lo com o olhar. Daniel é extremamente aventureiro. Ele quer ir a todos os lugares, não consegue ficar em casa todo final de semana e me carrega junto. Mas não reclamo porque estou adorando conhecer a cidade a fundo, os locais que ele gosta de frequentar e seus amigos. Seus amigos são muito divertidos e bastante diversificados.
Observo as mulheres dançando e como elas se vestem. Na minha etnia as mulheres não-ciganas são consideradas senvergonhas porque deixam o baixo ventre e as pernas a mostra. Usam saias e shorts curtos. Isso é uma das piores vergonhas para meu povo porque essa parte do corpo da mulher é sagrada e deve ser preservada. Já a região dos seios pode ser exposta sem problema algum porque é vista como uma área que serve apenas para amamentar. Além disso, não é bem visto uma mulher consumir bebidas álcoolicas fora de datas comemorativas e isso é tudo o que as gadjins fazem. Se alguém da minha comunidade viesse em um lugar como esse acharia tudo um verdadeiro absurdo.
Quando meus olhos vão voltar para a lata em cima do balcão, me deparo com um rapaz me encarando de maneira maliciosa. Ele bebe alguma coisa sugando por um canudinho e não tira os olhos de mim nesse processo executando gestos obscenos. Fico constrangido e desvio. Não é a primeira vez que outro cara dá em cima de mim desde que estou morando com Daniel. Sempre aparece algum interessado em mim quando saímos. Daniel já me disse que não se importa de eu ficar com outros homens além dele, mas só me pediu pra tomar cuidado, avisá-lo e sempre usar camisinha. Mas a verdade é que eu não sinto vontade alguma de ficar com ninguém além dele. Falando nele, volto a procurá-lo com o olhar, mas ele não está mais no lugar em que o vi pela última vez há alguns segundos. Ele me garantiu que não tem ficado com ninguém e se for ficar vai me contar, mas começo a ficar cismado e com ciúmes. Ele só deve ter ido no banheiro. Como ele mesmo me diz, eu não sou dono dele.
Termino a cerveja e quando estou prestes a me levantar, pronto para procurá-lo, ele aparece.
— Oi - diz me dando um selinho na boca. De soslaio percebo que o cara que estava me paquerando desiste de mim assim que vê que eu estou acompanhado. Se ele soubesse que isso não é empecilho para Daniel.
- Oi. Você sumiu. Fiquei preocupado.
— Ah, é sobre isso que eu vim falar... Não fica chateado, gato, mas o Ícaro está aqui. Eu não sabia que ele ia vim, foi uma coincidência, apesar de que nós sempre frequentamos os mesmos lugares desde que nos conhecemos.
Respiro aliviado. Achei que Daniel tinha ficado com alguém. Mas isso do Ícaro estar aqui não deixa de ser desconfortável pra mim, pois até o momento nós não havíamos dividido o mesmo espaço desde o dia em que nos conhecemos pessoalmente. Ele tem cumprido o acordo que fizemos. Daniel fica com ele quatro dias na semana e três comigo. No início eu fiquei chateado com o fato de eu ter um dia a menos com Daniel, mas entendi que Ícaro sempre será o primeiro.
— Ramon, - Daniel me chama visto que eu continuo parado sem reação. - Tudo bem para você ele ficar com a gente essa noite?
- Mas essa noite é minha - reclamo. Não consigo esconder meu ciúmes.
- Eu sei, mas só vamos dançar, beber e conversar, os três juntos, pode ser?
Bufo um pouco irritado e acabo aceitando só para ficar perto de Daniel. Não sei porque, mas não consigo dizer Não para ele.
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Beba deste cálice (CIGANO/GAY)
RomanceRamon é cigano, pertence a etnia Calon e cresceu levando uma vida peregrina pelo Brasil até sua comunidade finalmente conseguir se instalar em terras mineiras. Ele se entende gay e terá que enfrentar a própria cultura para ser quem realmente é.