Cap 22

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É engraçado como as coisas funcionam nessa sociedade de merda. Antes de casar com Jacobino e herdar toda sua fortuna, eu era só mais um cigano no Brasil, pobre, vivendo a margem, sendo discriminado, julgado e ridicularizado pelo simples fato de eu ser Kalon. Agora que tenho riqueza, poder e prestígio, todas as pessoas me tratam com deferência, sabem disfarçar bem seu asco por mim e me cobrem de pompa. Eles até conseguem fingir que não se importam por eu ser gay. É tanta falsidade e hipocrisia que eu chego a enjoar. Hoje percebo que não ter aonde cair morto tem lá suas vantagens, porque pelo menos eu sabia quem estava sendo realmente verdadeiro, mas não que eu não saiba, só é desgastante ter que ficar policiando e estudando as pessoas ao meu redor esperando por qualquer apunhalada pelas costas. Não sei onde eu estava com a cabeça quando aceitei a proposta de Jacobino, de me casar com ele e administrar seu patrimônio quando ele morresse. Eu só podia estar fora de mim. A questão é que desde que eu conheci Jacobino, uma sensação de dever para com ele tomou conta de mim e nunca mais me largou.

Não houve problema algum quando eu assumi de vez os negócios após seu falecimento. As pessoas com quem ele mantinha contratos já me conheciam, ele fazia questão de que eu o acompanhasse em tudo. Estamos na época de plantio e repassando os estoques.

Desde aquela noite, em que eu afrontei a família de Jacobino, eles mudaram radicalmente o jeito de me tratar. Aceitaram trabalhar sem reclamar e aparentemente estamos vivendo em harmonia. É claro que eu sei que tem coelho atrás desse mato. Não sou bobo. Eles estão aprontando alguma e eu tenho que ficar esperto, porque quando eu menos esperar, o porrete virá de qualquer lado.

Estou tão atarefado com essa vida de empresário em horário integral que já fazem três semanas que eu não vejo Igor e meu corpo não tem onde mais ficar tenso. Preciso vê-lo, sentir o gosto dos seus beijos, da sua carne, do nosso sexo.

Estou me preparando para subir as escadas, tomar um banho e ir até a pizzaria quando Eustáquio me abstém.

- Ramon, tem um minuto?

- Claro - digo depois de dar uma bufada discreta.

- Te peço encarecidamente que você adie todos os seus planos para essa noite, se tiveres algum, é claro... - ele tinha que ser irônico pois sabe que agora que as coisas estão mais tranquilas por aqui eu iria sair para procurar Igor.

- E posso saber por quê? - finjo que caí no seu jogo.

- A família do pretendente da Sara está para chegar a qualquer momento e sua presença é muito importante.

- Bom, quem vai se casar é a Sara. É ela quem vai decidir se gosta ou não do rapaz - retruco impaciente.

Ele dá uma risadinha, mas no fundo eu sei que ele quer me esganar.

- Na verdade ela já decidiu que vai noivar com ele. Eles se conheceram pela Internet. Sabe como é esses jovens de onde em dia né? Foi ela quem o escolheu e ele escolheu ela.

- Ah. Isso é muito bom - sou sincero. Pelo menos, os ciganos tem tido mais liberdade para determinarem a quem vão se unir. Estão casando mais velhos e as mulheres que querem até fazem faculdade. Mas o assunto homossexualidade continua sendo um tabu para todos. Isso não mudou e acho que nunca vai mudar.

- Sim. O negócio é que ele é da sua comunidade. Ele e a família dele estão vindo lá de Minas. O Virgílio fez questão de ir buscá-los. O jatinho já deve estar chegando.

- Como assim da minha comunidade? - meu coração samba.

- É, pois é. Ele é o seu sobrinho. Filho da Iaskara. O destino brinca com a gente, não é?

- É O QUÊ? - solto um berro sem minha concepção. Vladimir está vindo pra cá? Não pode ser possível! Eu vou ficar frente a frente com ele depois de todos esses anos? Bem que suspeitei dessa pacificidade toda desse povo. Eles descobriram que eu fugi da minha comunidade porque sou gay e agora querem me por cara a cara com meus familiares para me causar uma situação complicada. Malditos! Mas ao mesmo tempo que estou morrendo de ódio, estou cheio de expectativas para rever Vladimir. Passo a mão por minha barba, impactado.

- Não é uma maravilha, Ramon? Podermos unir nossas famílias? Nossa, como o Jacobino iria ficar feliz de ver isso! Lá do céu ele deve estar dando pulos de alegria!

Velhote ordinário! Minha vontade é de socá-lo e fazê-lo engolir sua malícia. Mas eu não vou dar esse gostinho para ele, não mesmo.

- E então? Me diz que você vai ficar pra jantar conosco? Você não está com saudades da sua mãe, da sua irmã? - minha mãe ainda está viva! Que notícia boa! - Vamos fazer uma festança nesse noivado.

Engulo seco ainda tentando digerir essa novidade. Estou me sentindo um idiota por não ter dado a mínima para toda essa movimentação. Mas não posso culpar ninguém, visto que eu nunca me interessei por nada que venha dessa família, a não ser quando o assunto é Jacobino.

- Você me convenceu - aviso firme com um sorriso de canto obscuro. Eles não vão conseguir me desestabilizar. Vou sair por cima dessa porcaria. Eu não sou mais aquele menino inseguro que fugiu por vergonha de ser quem é. Se essa é a minha sina, eu estou pronto para encarar minha família. - Eu não vou perder esse noivado por nada desse mundo!

Beba deste cálice (CIGANO/GAY)Onde histórias criam vida. Descubra agora