A visão de um súdito - Augusto

101 12 0
                                    


Linda fica majestosa sentada no trono. Não "majestosa" como uma rainha, engomada em tantos tecidos que poderiam vestir todos do vilarejo. Linda dispensa toda a boa conduta e os trajes pomposos. Seu corpo se acomoda na estrutura de ferro como se fosse uma malabarista, e o cenário, mesmo torto, parece correto. Suas pernas abertas sobre os braços da poltrona, sua coluna envergada, a expressão tediosa no olhar. Ela apoia o rosto na palma de sua mão, suas calças de baixo a cobrem como se só isso bastasse. Um pano em volta dos peitos, amarrados em nós de marinheiro, parecem poéticos, dado as circunstâncias. Seus cabelos trançados ao longo de sua silhueta, seus pés descalços, ela brinca com os polegares. E mesmo assim, nessa pintura devassa, ostenta a nobreza.

Um a um dos chefes de família se apresentam. Tavaras anota coisas importantes e Linda nem se quer finge ouvir. Ela já conhece cada um ali. Eles que nunca a viram antes. As mentiras não a comovem, suas juras de fidelidade não a encantam. Ela não quer gastar mais um minuto se quer, sentada nessa sala. Eu vejo seus olhos jogarem seus pensamentos pela janela, ao encontro do mar, que pode-se ouvir quebrando as ondas lá fora.

Eu me pergunto, quanto tempo ela ainda vai tolerar essa burocracia? Tavaras está montando uma tripulação com o que há de melhor na cidade. Entendo a cautela. Mas para um coração ansioso como o de Linda, eu duvido que ela entenda qualquer coisa.

Em meio ao entra e sai de homens socialmente importantes, Berenice entra no salão. Como o de costume, fazemos uma reverência. Afinal, estamos diante da Rainha Mãe.

- Reunião encerrada por hoje. – Berenice diz. Sua voz doce, mas assertiva. Linda se ergue do trono com uma gratidão evidente. Berenice sorri para a filha. Tavaras começa a questionar, Berenice levanta a palma de sua mão. – Eu disse, chega por hoje. – Nenhum outro ruido se ouve no salão. Eu cubro o rosto para sorrir. Os homens saem um por um. Quando estão a sós Tavaras fuzila Berenice com o olhar. Berenice parece não se incomodar. – Vocês precisam comer. Mandei preparar um almoço. – Linda desce do trono e abraça Berenice, ela a conforta, ajeitando suas tranças. – Vocês podem continuar brincando de piratas amanhã. – Berenice diz. Tavaras caminha até ela, Linda vem em minha direção. Consigo ver Tavaras dar um beijo nos lábios de Berenice antes de Linda cutucar minha testa.
- Pervertido! – Ela diz. Eu começo a me explicar e ela cai na gargalhada. – Quer ver meu quarto? – Ela me pergunta, eu pisco algumas vezes, confuso. Eu sempre esqueço que Linda não foi criada com os dogmas sociais e que ela não sabe que uma dama não pode convidar um homem solteiro para o seu quarto... Eu nem me preocupo em explicar. Apenas a sigo pelos corredores do castelo. A estrutura entra em choque com a simplicidade da cabana onde estávamos alojados até então. Lá, não tínhamos a opção de não ficarmos no mesmo quarto. Na verdade tínhamos, mas eu convenci Linda de que não ficaria na varanda e não usaria uma coleira.

As paredes são de pedras, tudo tem um tom acinzentado, como se a vida não corresse mais naqueles corredores. De fato, tem um pouco de verdade nessa afirmação. Linda caminha olhando para as paredes, como se pudesse ver algo que eu não posso, que mais ninguém pode. Existe uma realidade paralela que acontece embaixo de suas pálpebras. O tempo passa diferente para ela. Eu sinto que ela amadurece mais a cada segundo e que todo instante eu posso estar lidando com uma versão sua completamente diferente da anterior. É um absmo após o outro.

- Meu pai construiu esse castelo para viver como um rei. – Ela diz. Eu confirmo. Eu conheço a história. – Tem um quarto para cada uma de suas mulheres. – Ela continua. Eu apenas observo. – Sua rainha, minha mãe... – Ela faz uma pausa. – Se negou a morar aqui. – Ela faz outra pausa. – Minha mãe era nativa e preferia ficar com o seu povo. Quis morar na cabana ao longo das montanhas. Foi o que nos salvou. – Ela termina de falar chegando em frente a uma porta ornamentada. Uma das construções mais bonitas que eu já vi. Ela abre a porta com graça. – Mas meu pai não deixou de fazer um quarto para ela e um pra mim. – Linda conclui. O interior do quarto é digno de uma rainha. Decorado com relíquias de diferentes culturas. As paredes são bem pintadas e cobertas com tapeçarias. O dossel da cama é alto e bem firme ao teto. O tapete do chão... é um tigre. Lembra o tapete de Teresa.

- O quarto é realmente lindo senhora! – Eu digo. Ela sorri.
- Você tem que ver a vista! – Ela me puxa pelas mãos. Eu entro no quarto me sentindo um pouco deslocado, talvez até um pouco tímido. Porém quando chego até a janela... O mar. Daqui é possível ver o vilarejo inteiro e a costa. Conseguimos ver os barcos e o carregamento que está sendo feito. Linda ganhou o melhor barco que Torunta tinha e está o enchendo com mantimentos para uma viagem longa. Claro, o barco não é Teresa, mas vai cumprir a missão. – Quando partimos? – Ela pergunta. Seus olhos brilhando. Linda ganhou uma vida de rainha e não parece se importar. Nada que a terra possa lhe oferecer será suficiente. Eu temo que ocorra o mesmo com o mar.
- Eu não sei. Assim que os preparativos estiverem prontos, creio. – Eu digo. Ela bufa. Consigo sentir sua impaciência.

Somos interrompidos por uma serviçal. Ela toca na porta antes de entrar.
- Senhora? – Ela chama por Linda, que joga as tranças em sua direção. – Suas tias clamam por sua presença. – Ela diz, mantendo os olhos baixos. Linda sorri e agradece, a menina sai do quarto. Linda sustenta o olhar.
- Então você gosta de garotas? – Eu pergunto. Linda joga os braços para trás.
- De novo isso?

TormentaOnde histórias criam vida. Descubra agora