Você quer saber a verdade sobre o mar? Ele fede.
É poético a forma como meu pai descrevia suas lembranças, eu sentia o vento salgado no rosto enquanto decorria as linhas dos seus diários. Conseguia ver o horizonte tomando para si as cores cristalinas. Porém, a brisa, não tem o mesmo gosto de quando estamos com os pés na areia, lá é quente e convidativo. Nada se parece com o mar aberto que me rodeia agora! Aqui as passadas ficam bambas, o que causa enjoos. Além disso, as pessoas reduzem consideravelmente o uso de água potável para a higiene pessoal. Quase não existem banhos. As banheiras que meu pai usava com suas amantes? Privilégio. Boa parte da tripulação torce para não passar sede até chegar no próximo porto.
O que acaba deixando essas madeiras escuras com cheiro de corpos suados, sal, peixe podre e todas as expectativas frustradas.
Não existem aventuras embaixo desse sol escaldante. Eu até agora não vivi nenhuma. Só existe os panos das velas e um monte de água. Para todos os lados. Por isso devem inventar as histórias, por isso trazem bardos e bruxas abordo.
É entediante.
- Você parece frustrada. – Tavaras me disse, enquanto segurava o timão. Eu estava sentada em cima de umas caixas vazias brincando com as minhas tranças. Ela fitava o nada, com um sorriso fino nos labios. Será que ela sabe que está sorrindo?
- Não era bem o que eu esperava. – Eu disse dando de ombros, tentando colocar em palavras todo o sentimento que entalava em minha garganta. Nunca fui boa falando sobre sentimentos. Dentro da minha cabeça eles são gigantes, agitados, agressivos, mas quando cuspidos para fora... eles são apenas 7 palavras.
- E o que você estava esperando? – Ela perguntou sem tirar os olhos no horizonte. Eu pisquei algumas vezes. Eu não sei responder a essa pergunta. Também não sei o que ela está olhando? Fazem horas que não tem nada lá.O que eu estava esperando? Eu queria ver os homens brigando? As mulheres gritando? Os tiros pro alto? Eu queria ver as putas dançando e pessoas transando nos corredores? Eu queria ver os conselheiros tramando por baixo da mesa e apunhalando uns aos outros pelas costas? Por que pai, você gostava dessas coisas? Por que me contou sua vida e me fez querer tê-la também? Eu nem sei se eu gosto disso mesmo ou se eu só quero gostar porque esses pensamentos me distraem? Meu querer parece sombrio e confuso agora. Como eu vou responder a mulher que me criou como sua própria filha que eu queria viver a vida que a sucumbiu por inteira? Minha própria tormenta.
Não tem como. Por que seria mentira. Eu só quero pôr todo esse caos para o lado de fora. Arrancá-lo do meu peito com as minhas próprias unhas, cortá-lo de minhas veias e jogá-lo bem ali, no meio do convés. Todos estariam olhando e julgando, mas ao mesmo tempo sabendo que as águas não estavam tão calmas assim, eu tinha aquilo ali o tempo todo dentro de mim. Acho que dessa forma eu me sentiria segura, me sentiria em casa. Não estaria tão sozinha em meio a minha loucura. Outros também estariam sofrendo, estariam inquietos. Estariam sentindo, estariam vendo. Estariam vivendo. Finco as unhas nas peles dos próprios dedos. Tentando me trazer de volta para o presente e parar de ver as manchas em vermelho.
Essa vai ser minha primeira anotação em meu diário de bordo: Não confie em poetas, eles deixam a história mais bonita, porque estão cansados de encarar a realidade enfadonha. E não acredite em lunáticos! Eles mudam a história, transformam o que realmente aconteceu e anotam em diários de couro, depois traumatizam seus filhos. Porque é assim que se gera pessoas quebradas.
Não se curando e compartilhando textos motivacionais por aí, escritos sem motivação alguma, ou pior, pelas motivações erradas.
Tavaras me encarou, esperando uma resposta. Balançou seus cabelos loiros e curtos presos atrás de um pano e chapéu. Horroroso. Ela tem um péssimo gosto para chapéus!
- Gaivotas. – Foi o que eu disse. Ela sorriu. Sim, com certeza o que eu estava esperando eram pássaros costeiros. Mas é muito melhor do que dizer "eu idealizei que no momento em que eu colocasse meus pés em um navio, eu saberia, eu sentiria, eu estaria completa. Eu acreditei do fundo do meu coração, com todas as forças que me restavam, que se eu continuasse tentando, que se eu fosse forte, que se eu treinasse, estudasse, aguentasse... eu sentiria o gosto da tal felicidade, que todo mundo diz ver onde eu só vejo frango assado."
Tem isso também, a comida no navio é péssima.
![](https://img.wattpad.com/cover/297266473-288-k396558.jpg)
VOCÊ ESTÁ LENDO
Tormenta
AventuraA protagonista é louca e vai se tornar a vilã que mata todo mundo no final. É um prato cheio, tem romance sáfico, umas cenas de sexo bem quentes, tem tramas, mentira, fofoca e traição. O livro é contado através do olhar de vários personagens simulta...