Tormenta

Pesadelos - Linda

Aquela noite eu cheguei tarde em meus aposentos. Faltava algumas horas para embarcarmos. O céu já trocava a penumbra pelas cores do amanhecer.

Eu tinha uma ou duas horas de sono. Meu sono nunca foi tranquilo, mas não conseguia me lembrar a última vez que havia dormido.

Eu sentei na poltrona do meu quarto, encarando a janela que servia de transporte para as minhas aventuras. As cortinas esvoaçando, eu sorri. Não verei essas paredes de pedras pelos próximos meses. O cheiro do mar me alcançava me trazendo lembranças.

Meus olhos pesaram, em um piscar eu via meu quarto, bem decorado com peças roubadas, tesouros de reis que deviam muito para homens como meu pai.

Mais umas piscadas e fui levada para meu inferno pessoal. Minha mãe era linda, forte, valente. A criatura mais bela que já trilhou essa cidade. Ela estava perto do rio, pegando água para lavar nossas roupas. Minha avó estava sentada em sua cadeira de balanço, vendo as arvores. Eu lembro dos rostos delas quando viram os pássaros. Hoje eu sei o que aqueles pássaros significam. As aves e seus presságios. Eu estava brincando com as pedras. Minha mãe me pegou no colo, me entregou para a minha avó, elas não disseram nada.

Eu não consigo lembrar a ordem cronológica dos fatos.

O sonho se embaralha. Eu lembro de chamar pela minha mãe. O colo dela tão quente, tão seguro. O abraço da minha avó de memória fraca. Todas nós sabíamos que aquele era nosso último dia juntas. Minha avó me protegeu tudo que ela pode, antes de pintar o chão da cabana de carmim.

Eu sempre acordo com o mesmo estrondo, com as mesmas cores. É tudo vermelho. Não sei se é do fogo, do sangue ou da minha raiva.

Minha mãe lutou como uma leoa, foi o que eu ouvi dizer. Ela desceu por essas arvores e chegou atirando. Salvou mais homens do que poderiam agradecer. Eu nunca a vi usar as facas, mas segundo Tavaras, ela era incrível! Eu aprendi tudo que eu sei com minhas tias. Minha mãe queria que eu tivesse uma infância sadia e segura. Isso foi me tirado também. Tavaras me ensinou a ser forte. Fria e louca eu aprendi a ser sozinha.

Agora o sol já está beijando as águas salgadas.

Eu penso que tudo poderia ter sido diferente, se meu pai tivesse escolhido ficar com a gente. Eu já escutei a história umas mil vezes. Tudo aconteceu porque ele libertou um navio negreiro, isso incomodou famílias ricas e uma guerra fria começou no oceano e congelou a terra. Eu vivi como um fantasma e deveria ter sido. Porque minha vida era uma afronta. Homens como meu pai, não mereciam ter uma família.

Mas onde entra minha mãe? Ela era uma mulher simples do interior. Nasceu em uma cidadezinha pequena, se apaixonou pelo homem errado e não conseguiu tirá-lo da vida que foi escolhida para ele. Passou anos cuidando de uma mãe que não era sua, com seu marido e sua melhor amiga em um navio, se arriscando todos os dias. Criou uma criança sozinha. Se escondeu no meio da mata porque não aguentava ter o luxo de um palácio vazio. Toda aquela riqueza a lembrava da ausência.

Seu único pecado foi ter nascido mulher. Esse deve ser meu pecado também e eu posso continuar vivendo esse pesadelo, ou eu posso buscar pelas cores em vermelho que insistem em aparecer toda vez que eu fecho meus olhos.

Eu levanto da poltrona. Visto as roupas que estavam separadas para mim. Um casaco comprido, em mar aberto é mais frio. Um chapéu que acomoda minhas tranças. Botas com as laterais duplas para baiar minhas facas. As pistolas na lateral das minhas cinturas.

Eu escuto a batida na porta e eu sei que Luci está atrás daquela madeira grossa. Aguardo mais uns instantes, ela entra no quarto. Reconheço seu caminhar pelo som. Eu sempre arranjo tempo para ela. É a primeira vez que eu me despeço de alguém. Os outros nomes foram arrancados de mim.

Ainda não decidi o que dói mais.