Acostumada com a Melancolia - Linda

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Eu abro meus olhos, o navio se mexe e meu corpo acompanha esse movimento. É estranho como em terra é tudo tão firme, sólido, certo. Como se os dias fossem talhados em pedra. Aqui no mar, eles se misturam, virando um emaranhado de lembranças. Compreendo agora a importância dos diários de bordo, não são para manter a ordem do navio, para contabilizar mantimentos e organizar o financeiro. Dane-se os relatórios! Os diários servem para contar os dias, separá-los, dar sentido a eles. São paginas milagrosas, onde os marujos depositam a fé da sanidade.

Sanidade.

Eu sinto que mesmo antes de subir no convés pela primeira vez, eu já havia perdido o privilégio da sensatez.

Continuo encarando a madeira pesada do teto da minha cabine. Eu sinto falta de Luci. Do seu toque, da sua presença. Eu sinto falta da sua companhia, mesmo que fosse breve, mesmo que fosse as escondidas. Sinto falta de estar com alguém que estava igualmente interessada em sentir algo para além da política, para além da família. Lucia me fazia tremer. Os pelos do meu corpo levantam toda vez que ela fala perto do meu pescoço e isso é capaz de silenciar a orquestra particular que eu tenho dentro da minha cabeça.

Eu tento mover meus músculos para fora da cama. Tem dias que são mais difíceis. Eu sou jogada de pesadelo para pesadelo, em uma valsa incansável. A dança parece infinita até que eu despenco. E quando finalmente acordo, não consigo me mexer, completamente petrificada, com uma sensação gelada como se eu realmente tivesse caído de algum lugar. Fico assim, por alguns instantes, recupero a consciência, tento tomar posse do meu corpo. Me xingo em pensamento. Depois, quando finalmente me levanto, é como se meu corpo me xingasse de volta.

A sensação é como se eu realmente tivesse dançado a noite toda.

Sentada em minha cama eu coloco minha mão em meu ombro, me fazendo uma massagem. Aperto os músculos. Encaro as roupas que estão separadas em minha frente. A minha cabine não é luxuosa. É bem diferente do meu quarto no castelo, diferente da cabana e com certeza, não se parece com nada que meu pai já tenha descrito em seus diários. É um espaço relativamente pequeno. Tem uma cama de solteiro, uma escrivaninha ao lado, acompanha uma cadeira e um armário perto da porta. Existe uma claraboia que funciona como janela. É mau iluminado e arejado. É uma prisão. Sai de uma ilha e me enfiei em uma ainda menor.

Levanto e me ponho a vestir as roupas separadas. Eu deveria solicitar um espelho para deixar nesse canto da cabine. Será que tem algum espelho abordo? Já vestida eu passo pela soleira da porta que separa a minha cabine do corredor principal. Alguns marujos passam por mim e me cumprimentam. Eu retribuo o gesto e me encaminho em direção a cozinha central. Já fazem algumas semanas que estamos no mar. Teve dias em que eu não escrevi nada no diário, apenas uma frase embebida em sarcasmo, para que eu soubesse que aquele dia existiu. Foi a forma que eu encontrei de transparecer a verdade para quem fosse ler: vão ter dias que não serão memoráveis, não serão divertidos, nem épicos e nem suficientemente trágicos para serem traumáticos ou tristes. Serão apenas tediosos e aprender a lidar com o meu tédio tem sido meu maior desafio até então.

Deve ter sido esse o meu erro. Eu menti para mim mesma quando apostei com o destino, quando tomei pra mim a certeza de que o mar me traria a sensação de completude que me falta. Eu tenho um buraco bem no meio do meu peito e não tem nada que eu faça que seja capaz de preencher esse vazio. Toda felicidade se torna momentânea.

Todo o prazer é rapidamente substituído, como se não fosse grande o suficiente para ocupar esse espaço.

Mais pessoas passam por mim nos corredores, sorriem ao se aproximar, eu retribuo. Ninguém parece notar que o tal buraco em meu peito está bem ali, latejando, sugando partes minhas para dentro de mim mesma. Essa dor é invisível aos olhos.

Chego na cozinha, fui arrastada até ali pelos meus devaneios. Berenice está sentada na mesa com mais algumas mulheres rechonchudas, acompanhadas de Augustos e suas anotações. Estamos a alguns dias da primeira parada. O porto que vai nos abrigar e repor mantimentos antes de irmos para a Inglaterra. Eu estava mais animada em conhecer uma cidade nova ontem, até rascunhei sobre isso em meu diário de bordo, mas hoje... até a ansiedade deixou de me fazer companhia.

Esse é o problema das expectativas, são hipóteses, realidades alternativas que não existem, de fato.

- Noite difícil? – Augusto me pergunta. Eu confirmo. Sento em sua frente, separados pela mesa, pego um pão doce e mordo. Enquanto escuto o falatório matinal. Sou recebida com mais sorrisos. Nas semanas em que eu tive no navio, estudei política, boas maneiras e os costumes ingleses. Passei bastante tempo com Tavaras que está me ensinando a navegar. Eu gosto! Mas ainda tenho muito para aprender. Ela segura o timão com tanta precisão. Já Berenice, parece encantada em dividir suas receitas as mulheres da cozinha, bem como conhecer as filhas das serviçais, que também trabalham na limpeza e organização. – Ainda com a sensação de que não pertence a lugar nenhum? – Augusto me tira dos meus pensamentos, como se me puxasse para fora através de um anzol. Eu confirmo com a cabeça. Não digo nada. Eu não preciso. Ele levanta e me convida para sair dali. Eu vou.

Eu preciso sim fugir. Mas não sei bem para onde. Não é como se eu já não tivesse andado esse navio inteiro uma centena de vezes.

Subimos as escadas principais em silêncio. O sol nos encontra, minha visão precisa se acostumar. Eu faço uma piada mental com tapa olho.

Tavaras está encarando os mapas com o cenho franzido. Me aproximo, nos cumprimentamos, sem muita demonstração de afeto. Ninguém pergunta nada, mas ela diz mesmo assim: - Ao que tudo indica, se continuarmos com o vento ao nosso favor, chegaremos ao porto antes do esperado.
- Antes o quanto? – Eu pergunto. Ela estala os lábios.
- Amanhã pela manhã. – Eu levanto as sobrancelhas. Augusto parece animado. A novidade recai sobre mim. Amanhã pela manhã... talvez eu esteja anestesiada. Como quando aqueles insetos picam e você fica sem sentir uma região do corpo porque o veneno está agindo ali. Talvez tenha veneno em minhas veias, o meu próprio veneno.
- Ouviu isso Linda? – Augusto pergunta, tentando arrancar alguma reação de mim. Tudo que eu sinto é calor e um pensamento intrusivo sobre pular na água do mar. O quão fundo seria? Eu sorrio de volta para Augusto. Ele não parece convencido. Eu desço as escadas que me trouxeram até ali.

Eu tentei viver o dia de hoje. Eu tentei me forçar a interagir, a socializar, eu tentei adquirir novos conhecimentos, a ser produtiva, a ser positiva. Mas tudo que eu quero é a minha cama.

Amanhã eu posso tomar decisões que mudarão a minha vida e mesmo assim, saber disso não torna essas decisões mais simples. Sequer deixa as mesmas claras e objetivas. Saber que as possibilidades existem só deixa tudo mais complexo.

É um universo completamente novo pra mim. Novas pessoas, novas paisagens, novos cenários. Algumas dessas pessoas querem me matar apenas por eu ser quem eu sou, para outras, tanto faz, eu estava morta até alguns meses atrás. Mas e pra mim? Envolta em centenas de pensamentos eu não me permito acolher a sensação infantil de deslumbrar novos cenários pela primeira vez. Novos idiomas, nova culinária, nova cultura.

Impressionante como nada parece atrativo, quando seu peito não está disponível para abrigar novos sentimentos.

Eu já devo ter me acostumado com a minha melancolia. Ela é a parte escura da minha loucura.

TormentaOnde histórias criam vida. Descubra agora