Vicentina França dos Santos era conhecida da vizinhança de classe média-baixa apenas de vista e um "bom-dia". Além, obviamente, das histórias que se contavam a respeito dela: uma senhora de idade, solteira e sem filhos, que teve apenas uma sobrinha, uma moça que ajudou a criar; porém, há anos ela não aparecia em sua residência.
Quando o assunto era a sobrinha, Vicentina comentava no grupo da igreja que a moça era uma "ingrata" e "se perdeu no mundo". Porém, os vizinhos mais antigos da senhora, e que não faziam parte do grupo de oração da igreja, conheciam exatamente a verdadeira face da mulher.
Todos sabiam que, na verdade, Eva Maria Santos foi embora porque não aguentava mais a própria tia.
Vicentina frequentava o grupo da igreja todos os domingos, ia sempre aos cultos dia sim dia também. Não era incomum que ela, ao comprar algum produto no mercado da vizinhança ou no ponto de ônibus, quando precisava se consultar com o médico, comentasse sobre a aparência de algum vizinho ou uma pessoa da vizinhança, dizendo que certa pessoa não tinha moral porque não frequentava a igreja. Ou alguma vizinha era uma "perdida" porque morava com um homem sem casar.
- Quem ouve essa daí até pensa que ela é exemplo de moral e retidão... - comentou certa feita uma vizinha, revirando os olhos ao se lembrar das conversas de Vicentina – Quem acredita nela é o coelho! Eu vi o jeito que ela tratava a sobrinha...
- Mas pelo menos ela podia dar um dinheirinho pra tia... Dona Vicentina não ajudou a criar? Um pouquinho de gratidão não faz mal! - o marido da moça respondeu, mais condescendente.
- É que você não morava aqui quando viviam as duas juntas! Um caos, sempre com briga, com discussão, a menina era uma adolescente querendo ter uma vida normal, e ela controlando porque uma coisa "não era de mulher correta", outra coisa " era de mulher desfrutável"... Ela não aprontava, não fazia nada de errado.
- Oxente! Por que Dona Vicentina não gostava da própria sobrinha?
- Minha desconfiança é que tem a ver com os pais dela, mas eu nunca fui tão próximo assim de Dona Vicentina pra saber das coisas..
Vicentina retornou à sua casa após mais uma ida ao médico e aproveitou para deixar a televisão ligada enquanto arrumava a mesa. Deixou sintonizado o aparelho em seu canal favorito, onde era exibida uma novela religiosa, e Vicentina assistia com muita animação.
Foi até a cozinha a fim de preparar o café: deixou a água fervendo no fogão, e assim que ouviu o barulho das bolhas, foi até a cozinha a fim de passar o café no coador. Quando terminou de colocar o líquido no quente frio, Vicentina percebeu que não havia nenhum som vindo da sala.
A luz da cozinha se encontrava acesa; não ocorrera queda de energia. Será que a televisão tinha queimado? "Comprar outra tevê... Só tem tevê cara nessas lojas!"
Vicentina saiu da cozinha com a jarra na mão e teve uma estranha surpresa quando chegou à sala de casa.
- Titia... Não sabia que estava se entregando aos prazeres mundanos e vendo novela na televisão.
Há anos que Vicentina não ouvia aquela voz ou encarava aquele rosto. Eva, a sobrinha que ela sempre detestou, estava bem à sua frente em pé e de braços cruzados como se nada estivesse acontecendo. Ela percebeu que a jovem estava bem-vestida: um modelo tubinho preto, sem mangas; cabelos crespos penteados para o lado, de uma maneira que reforçava o volume das madeixas; e a maquiagem era algo que Vicentina achava "mundano" - Eva usava um batom preto aveludado e delineador bem escuro, com a sombra em tons prateados.
A jovem caminhou até a tia, que ouviu o barulho dos saltos altos e reconheceu a gargantilha de veludo brincando no pescoço da jovem. Porém, dois detalhes chamaram a atenção de Vicentina: dois pequenos pontos em sua jugular, parecendo cicatrizes ou marcas de injeção.
- Como você invadiu minha casa, sua bandida?
- Eu? Não invadi sua casa, na verdade eu sempre tive a chave. Quando eu fui embora daqui, em nenhum momento deixei a chave para trás. - Eva sorriu movendo a língua por dentro da boca.
O movimento não passou despercebido a Vicentina:
- Você veio aqui roubar meu dinheiro, deve tá se drogando... Ou então virou puta. É só olhar esse tipo de roupa que dá pra saber que você é igual a sua mãe-
- Sabe qual o seu problema, titia? Inveja. Pura e simples. Inveja de minha mãe, que era uma mulher livre e nunca se preocupou com nada, e foi amada com todo o coração dela. Ódio de meu pai, porque ele nunca foi a pessoa que você esperava, que você e sua família de gente invejosa podiam manipular. Eu consigo sentir o seu recalque de longe, de mulher mal-amada e ressentida!
"Eu tentei... Juro que tentei te entender, te amar, mas era impossível. Se você tivesse sido boa, gentil, decente, comigo, puta que pariu, seus últimos dias seriam melhores! Você teria uma pessoa do teu lado, companha, apoio financeiro, uma vida mais confortável, e não ficar nessa miséria que você vive. Todo mundo te odeia, se bobear, nem teus vizinhos te aturam!
Pior: eles nem sabem se você está aqui, se você foi pra igreja... E estão pouco se lixando se você morrer ou ficar viva. Olha, se você caísse durinha aqui, duvido que os vizinhos bateriam em sua porta no dia seguinte, sentindo que você sumiu.
Pelo contrário: eles nem iam reparar. Você ia definhar aqui por dias, meses, anos, que é o que você merece, desgraçada."
- Você tá querendo me matar? Eu vou gritar, sua bandida!
Vicentina abriu a boca para pedir socorro, mas Eva foi bem mais rápida: a sua velocidade era maior do que o que a senhora poderia perceber, já que era a agilidade fruto de sua força vampírica. Em um piscar de olhos, Vicentina estava sob o olhar brilhante de sua sobrinha, encostada na parede, Eva com a mão em seu pescoço, apertando-o profundamente.
- Ninguém vai sentir sua falta, velha podre.
- Se vo-vo-você me matar... T-todo mundo... Vai saber q-q-que... Que você... E-e-entrou...
- Acha realmente que alguém me viu entrar? Que alguém me viu passar por essa porta com uma chave? Nem você notou que eu entrei aqui e desliguei a TV! Pare de se sentir importante, sua bruxa velha. Ninguém vai se importar quando você tiver virado panqueca.
Eva levou novamente a língua para dentro de sua boca, mexendo por dentro de forma obsessiva.
- Agora, titia, é hora de você finalmente servir para alguma coisa neste mundo... Digamos que eu vim visitar a minha antiga família porque eu estou com fome e vim jantar...

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Pecado Oculto
RomansaCAPÍTULOS TODOS OS SÁBADOS A presença de vampiros em Salvador faz algum sentido para você? Para Eva, faz todo o sentido: de dia, ela trabalha como secretária de um ricaço recluso e fotofóbico; e à noite, é a improvável parceira do vampiro Dimitri V...