O coração de Chaeyoung estava disparado. Parou junto à vigia, tocando a cortina. Lisa estava sentada na cadeira do outro lado da cabine. Era um meio-termo razoável. Ela jurou que não iria atacá-la, mas como Chaeyoung poderia ter certeza, sabendo o que sabia agora?
Enquanto segurasse a cortina, mantinha uma frágil segurança. Se a aspirante se mexesse em sua direção, ela iria expor a luz de novo para obrigá-la a recuar outra vez. Era estranho pensar nela desse modo. A garota não parecia nem um pouco com um monstro. Era sua aliada, havia salvado sua vida.
Será que poderia realmente lhe fazer mal? Poderia ser realmente uma... uma... Ela nem conseguia se obrigar a formar a palavra.
— Quantos anos você tem? — perguntou, em vez disso.
— Dezessete. Mas achei que você já sabia.
— Quero dizer, em que ano você nasceu?
— Ah. — A aspirante sorriu, assentindo mas não respondendo.
— Que ano, Lisa? Preciso saber.
— Mil oitocentos e três.
— Então, na verdade, você tem 709 anos!
— A coisa não funciona assim, Chaeyoung. É difícil explicar. Tenho 17 anos. É a idade que tinha quando fiz a travessia. E é a idade que sempre terei.
— Mas você percorre essas terras, esses mares, há mais de sete séculos?
— O tempo se move de modo muito diferente deste lado — disse Lisa em voz baixa. — Para dizer a verdade, perdi a noção de como era antes.
— Esqueceu sua vida?
Ela balançou a cabeça.
— Longe disso. Lembro-me muito bem dos fatos de minha vida. Lembro-me do tempo que passei em Bangkok e de tudo que me aconteceu. Lembro-me de como terminou. Mas é como uma história que alguém contou repetidamente. Sei de cada detalhe mas não me lembro da sensação de estar viva.
Chaeyoung olhou a garota à sua frente, apenas quatro anos mais velha, numa medida, no entanto a um mundo de distância, em outra. Era difícil absorver.
— Quando a gente atravessa — explicou a aspirante —, perde os ritmos antigos. Posso andar e falar como antes. Posso ajudar a velejar um belo navio como este. Mas não posso sentir as coisas que você sente. É difícil descrever, Chaeyoung. O que eu daria para sentir ao menos por um instante o que você sente! Até sua dor seria melhor do que esse entorpecimento.
Chaeyoung franziu a testa. O que ela sabia de sua dor? Se ela quisesse trocar de lugar, a Park estava pronta para refletir sobre a idéia.
Logo sua raiva se dissolveu ao notar uma estranha expressão passando pelo rosto dela. Só por um momento ela não aparentava ser a Lisa que Chaeyoung conhecia.
Seus olhos pareciam vazios como os de uma estátua, as narinas se alargaram e, quando a boca se abriu, ela vislumbrou uma agudeza incomum num dos dentes. Chaeyoung estremeceu. Lisa parecia com o outro, Hyun. Então percebeu. Havia outros como Lisa a bordo. Muitos outros.
Lisa estremeceu ligeiramente e suas feições voltaram à forma conhecida. Olhou-a com aqueles olhos familiares, como se nada tivesse acontecido. Aonde ela teria ido naquele momento estranho? Ela não ousou perguntar.
— Eu não deveria estar lhe contando essas coisas — disse Lisa.
— Você será punida? O que o capitão vai fazer?
— O capitão é um homem justo. Não estou nesta tripulação há muito tempo, e não o conheço muito bem. Ele não é uma pessoa que a gente conheça direito. Mas trata todos com justiça. Ele tem uma visão especial. Desde que fiz a travessia, estive em lugares terríveis, lugares de escuridão que espero que você nunca veja. Mas agora estou em segurança. Este navio é meu porto seguro.
— E eu, estou em segurança? — As palavras escaparam antes que ela tivesse chance de censurá-las.
— Com relação a mim? Sim, Chaeyoung, você está em segurança. Jurei antes e vou jurar de novo: nunca lhe farei mal.
Ela queria acreditar. Achava que podia confiar na outra. Mesmo assim continuava segurando a cortina com firmeza.
— Mas estou segura com relação aos outros?
Lisa não ergueu o olhar. Enfiou a mão no bolso e pegou uma chave de ouro numa corrente comprida. Deixou-a balançar de um lado para o outro como se a estivesse hipnotizando.
— Por que acha que está sendo mantida trancada na cabine ao lado da do capitão?
Ela não tinha resposta. Olhou a chave balançar de um lado para o outro, imaginando o que custaria pegá-la e fugir. Se puxasse a cortina, a garota iria largá-la num instante. Isso lhe daria tempo suficiente...
— Talvez você tenha sido trancada não para que você fique dentro, mas para que os outros fiquem fora — continuou Lisa.
As palavras a fizeram imobilizar-se. Faziam sentido. Quantos mais haveria lá fora? Lisa enfiou a chave com a corrente no bolso.
— As coisas nem sempre são o que parecem, Chaeyoung. Mas suspeito que você já saiba disso. O capitão ordenou que eu a protegesse. Por isso você está nesta cabine, por isso ainda não pode sair.
— Mas o que o capitão quer de mim? Não entendo.
— Isso não sei, Chaeyoung. Só estou obedecendo a ordens.
Um instante antes ela havia se sentido em segurança, tranquila. Agora se sentia mais ameaçada do que nunca. Lisa podia falar e falar, mas não tinha poder verdadeiro. O destino de Chaeyoung estava nas mãos do capitão.
— Quero vê-lo — anunciou.
— Ver quem?
— O capitão? Você vai trazê-lo aqui?
Lisa riu.
— Já não deixei claro? Ninguém, mas ninguém, manda chamar o capitão, Chaeyoung. Ele irá vê-la quando decidir que é hora.
— Não. Já esperei muito. Quero vê-lo. Peça para ele vir aqui ou me leve até ele. Agora.
Sua respiração estava acelerada. Precisava encontrar uma solução para aquilo.
— Mesmo que eu quisesse, não poderia. Pelo menos enquanto estiver claro. O navio dorme durante o dia. Quando soa o Toque do Amanhecer, o convés se esvazia e todo mundo procura abrigo. Até o capitão.
— Mas o Toque do Amanhecer não soou. Você mesmo disse. — Chaeyoung estava pensando, de pé.
— É, mas não importa. Não sei por que Jisso não tocou, mas isso não muda nada. Apenas o capitão pode andar sob o sol.
Chaeyoung pensou por um momento.
— Você não pode sair, é verdade, mas eu posso. Se me der a chave, posso encontrar o capitão sozinha. Você disse que a cabine dele fica ao lado.
Lisa balançou a cabeça.
— Não vou lhe dar esta chave, Chaeyoung, sinto muito.
Ela franziu a testa e o olhou de volta, cheia de teimosia.
— Pensei que você fosse minha amiga.
— Esse foi um golpe baixo, Chaeyoung. Fiz o que pude por você. Nadei nas águas geladas por você. Defendi você com o capitão. E arrisquei minha segurança e minha reputação ficando aqui com você. Mas agora tenho de obedecer às ordens.
Chaeyoung cruzou os braços e mordeu o lábio, frustrada. Sentiu gosto de sangue de novo. O resto aconteceu num borrão. Subitamente Lisa estava parada junto dela, os olhos espiando os seus, mais concentrados do que nunca.
Sua mão se estendeu para a dela e ela percebeu que precisava largar a cortina. Agora não havia como escapar do aperto no momento em que Lisa virou a palma de sua mão para cima. Então ela sentiu a frieza do metal quando a outra apertou a chave em sua mão.
— Vá — disse Lisa. — Vá agora, antes... antes que eu mude de idéia.
A garota se virou e cobriu os olhos. Suas mãos estavam tremendo. Chaeyoung sentiu o peso da chave e da corrente. Olhou para a porta.
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Siblings Park - Demônios do Oceano
Vampir2505, litoral oeste da Austrália, em um lugar conhecido como Baía Quarto Crescente, é ali que os irmãos Jimin e Chaeyoung partem, após a morte do pai, faroleiro da cidade onde viviam. Negando a serem adotados ou irem para um orfanato, decidem fugir...