A Fome

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De volta à sua cabine, o capitão se acomodou na cadeira de balanço diante da lareira. Arrumou sua capa, como sempre fazia, em dobras precisas. Poderia ter sido uma cena aconchegante, pensou Chaeyoung. Se ele não fosse o capitão de um navio de vampiros.

Se ele tivesse olhos humanos, lábios e um nariz para levar o ar para dentro e para fora do corpo — em vez do vazio escuro onde aquelas feições deveriam estar. Se em todas as outras cabines o resto da tripulação não estivesse saciando a fome de sangue.

Sim, mas apesar de todas essas coisas, poderia ter sido uma cena aconchegante. E qual seria seu destino, pensou, olhando-o atiçar o fogo, com a pele atrás da cabeça lembrando-a de que ele ainda possuía alguma conexão com sua forma humana.

Ele a havia salvado das garras de Hyun, sim, mas talvez ela não tivesse sido exatamente resgatada, e sim trocada.

Talvez ele tivesse usado a autoridade de capitão para reivindicar seu sangue. Enquanto seguiam pelos corredores do navio, Chaeyoung tinha visto porta atrás de porta se fechar, cada vampiro seguindo seu doador para dentro das cabines.

Os doadores entravam primeiro, sem exceção, notou ela. Como se entrassem por livre e espontânea vontade. Ou, talvez, para não poderem escapar.

— Você está tremendo, criança. Venha se juntar a mim, perto do fogo. — Como antes, as palavras pareciam sussurros dentro de sua cabeça.

Enquanto Chaeyoung andava, hesitante, o capitão virou o rosto mascarado para ela.

— Ah, vejo que não é o frio que a faz tremer assim. Mas por quê? Eu lhe disse que não há nada a temer.

Ela pensou de novo nas portas se fechando. E na lânguida resignação dos doadores ao seu destino.

— O que está acontecendo nas outras cabines?

— Claro, você precisa saber. Por que não fica à vontade? Eu me esforçarei para responder às suas perguntas.

Ele tinha a capacidade de fazer tudo parecer razoável, como se estivessem falando de um problema com o dever de casa de Chaeyoung, e não sobre os atos selvagens que aconteciam nas outras cabines enquanto conversavam.

Chaeyoung sentou-se na cadeira de balanço ao lado dele, mas só na beirada, os pés pousados no chão para manter a cadeira imóvel.

— Como você viu, criança, cada um dos membros da tripulação tem um doador.
Deixe-me garantir que os doadores são bem cuidados. São alimentados generosamente e vivem com conforto.

Isso, pensou Chaeyoung, era questão de opinião. Como seria possível viver com conforto quando se sabia que era preciso oferecer o sangue a outro, toda semana?

— É uma boa pergunta — disse o capitão. Chaeyoung ficava irritada com a facilidade dele para ler seus pensamentos. — Mas o momento de compartilhar, como dizemos, não é doloroso e é bastante breve.

Chaeyoung ergueu os pés do chão e dobrou as pernas, ficando mais à vontade. À medida que relaxava, começou a sentir-se cansada e conteve um bocejo.

— Nós damos aos doadores uma dieta muito cuidadosa, extremamente rica em nutrientes. Por isso — observou ele com um sorriso — ela pode deixar as pessoas bastante sonolentas.

Ao ouvir as palavras, Chaeyoung se empertigou bruscamente. O capitão continuou:

— Essa comida nutritiva pode ser um choque para o organismo. Mas, como você pode imaginar, resulta num sangue de grande qualidade. E é assim que conseguimos reduzir o compartilhamento a uma vez por semana. Fazemos disso uma festa, um ritual, acho, não somente para maximizar o conteúdo do sangue na época do compartilhamento, mas também para prestar homenagem aos doadores. Agradecemos muito a doação — a doação da vida. A cada semana, veja bem, a tripulação renasce.

Ele parou e atiçou o fogo outra vez.

— Mas e se os outros membros da tripulação quiserem sangue em maior quantidade, ou com mais frequência?

— Essa opção não existe, Chaeyoung, pelo menos enquanto eu for o capitão do navio. Eles não precisam de um festim com mais frequência e não precisam de mais do que determinada dose de sangue. Tomar uma quantidade maior não somente poria o doador em perigo, mas a eles próprios também. Iria desequilibrá-los, criar... como é a expressão para isso? Alterações de humor. O problema é que, quanto mais a gente toma, mas acha que precisa. Mas existe uma diferença, veja bem, entre o que a gente precisa e o que a gente se convence de que precisa.

— Mas — Chaeyoung não conseguia deixar o assunto de lado. — E se houvesse vampiros sob seu comando que quisessem tomar sangue de modo menos controlado?

— Então teriam de deixar o navio e seguir seu caminho no mundo. Não é desse modo que fazemos as coisas aqui. Os vampiros são muito denegridos, Chaeyoung. Fomos demonizados. Bom, pense na cantiga: se os piratas são perigosos e os vampiros são a morte... Você sabe que é verdade. E, claro, entendo por quê. Nós fizemos isso conosco. Sentimos a fome e baseamos toda a existência nela. Mas eu descobri outro caminho. E eu mesmo nem preciso mais de sangue.

Essa era uma notícia bem-vinda para Chaeyoung. Suas mãos apertadas começaram a relaxar lentamente. Mas como poderia ser?

— Para alguns de nós é assim. A necessidade de sangue é realmente de prana, energia. Aprendi a me alimentar somente disso.

— Então o senhor toma energia de seu doador?

— Eu não tenho doador, Chaeyoung. E não, não estou procurando um, pode relaxar. A absorção de prana acontece de modo um pouco diferente. Mas é complicado e acho que essa é uma discussão para outra hora. Sua cabeça deve estar girando com tudo que viu e ouviu esta noite. Você parece cansada e confesso que também estou. Mas deixe-me garantir que sua fadiga é natural e que não tenho necessidade de tirar energia de você. Espero que a tenha tranquilizado para voltar à sua cabine e descansar.

— Sim — disse Chaeyoung, levantando-se da cadeira. — Sim, estou mais tranquila.
Obrigada.

— Ótimo. — O capitão se acomodou de novo na cadeira e inclinou a cabeça para o peito.

Atrás dele o fogo diminuiu um pouco. Chaeyoung pensou que as veias de sua capa estavam luzindo um pouquinho, mas talvez fosse apenas o reflexo das brasas.

— Gosto de nossas conversas, Chaeyoung.

Ela sorriu.

— Eu também gosto. Durma bem.

Em seguida abriu a porta e saiu para o convés escuro e deserto.

Uma brisa agradável soprava e Chaeyoung foi de novo até a amurada. Virando-se, levantou os olhos para as velas parecidas com asas.

A lua brilhava baixa e espalhava luz nas velas, fazendo-as brilhar como a capa do capitão. Podia jurar que via as mesmas veias na parte de baixo do material.

Que material seria? Seria o mesmo tecido da capa do capitão?

— A lua está cheia esta noite, não é?

Ela não estava mais sozinha. Sem se virar, reconheceu a voz. Era Hyun. O sangue de Chaeyoung gelou.

— E quando a lua está cheia eu sinto mais fome.

Quando se virou, Chaeyoung viu um horror muito maior do que havia previsto. Em seus braços grossos e cheios de veias, Hyun carregava um homem — o homem que havia se sentado diante dele no Festim.

Estava frouxo e parecia adormecido, mas um raio de luar revelou que era um sono do qual ele jamais acordaria. Hyun havia drenado sangue demais.

E agora o vampiro caminhou pelas tábuas vermelhas do convés e, sem hesitar um instante, jogou o cadáver pela lateral do navio. Chaeyoung ouviu o som oco do corpo batendo na água.

O som ricocheteou em sua cabeça como um tiro de canhão. Nunca correra tanto perigo. Nunca havia se sentido tão completamente sozinha.

Hyun voltou-se na direção dela. Quando pisou no raio de luar, suas feições estavam distorcidas, os olhos, de novo, parecendo poços de fogo. Sem dúvida, continuava nas garras sombrias de uma fome terrível.

Ter tomado demais de seu pobre doador não o havia saciado. Como o capitão previra, isso havia despertado um apetite insaciável. Chaeyoung não podia correr.

Precisava esforçar-se para não cair no chão, exaurida de toda energia e resistência. Hyun abriu a boca num sorriso terrível e a luz ricocheteou em seus dentes de ouro afiados como adagas.

— Vamos à sua cabine — disse ele.

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