.:02:. Apresentando Freya

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.:2:. Apresentando Freya

Entre o zênite e o horizonte, era possível ver um corpo celeste: uma imensa esfera de circunferência várias vezes maior do que a da lua. Não que o corpo celeste fosse imenso. Era a Lua que era pequenininha mesmo.

Parado na mesma posição há bilhões de anos, o planeta Gêmeo tinha esse nome justamente por ser irmão do planeta Origem. Duas criancinhas cósmicas brincando de ciranda ao redor do Sol. Duas esferas girando em torno uma da outra em perfeito equilíbrio entre rotação e atração gravitacional. Como em uma competição de quem ri primeiro, ambos se encaravam desde que se entendiam por planeta.

Nenhum perdera até hoje.

Eram tão estáveis que se podia construir uma ponte ligando os dois. Eram tão estáveis que construíram uma ponte ligando os dois.

Mas essa história não se trata sobre pontes.

Nem sobre os planetas em si.

Mas sim sobre uma megalópole localizada em Origem. Mais precisamente, a cidade de Neonelly, que na língua local significa Cidade do Neon.

Sim, neon, os letreiros luminosos de vidro e gás; objetos únicos, feitos à mão, sem a utilização de máquinas ou moldes. Pois é. O artesão pega um tubo de vidro e, aquecendo-o, vai dobrando o material até atingir o formato desejado. É um trabalho de fogo e delicadeza, onde qualquer erro pode partir o vidro, obrigando o profissional a refazer tudo do zero.

Letras cursivas, figuras humanas, logotipos, tudo é feito com maçaricos, alicates e muita habilidade. E quando o desenho final é alcançado, preenche-se o tubo com um gás inerte (não necessariamente neon), fecha-se as extremidades com eletrodos et voilà! Linhas de cores riscando à noite em convites para todo o tipo de atividade.

Todo tipo mesmo.

Especialmente em Neonelly.

Mas o nome da cidade é um tanto enganoso. Não era neon que riscava as ruas da Cidade do Neon. Até porque outros gases podem ser usados para se obter diferentes cores.

O que riscava a noite hoje em dia não eram átomos levando choque, mas sim linhas de magia.

Sim, mana em sua forma mais pura, caminhando em desenhos ainda mais complexos do que seu primo gasoso.

Depois que um desconhecido empreendedor conseguiu estabilizar fluxos de mana em circuitos fechados, o custo de produção e manutenção caíram tanto que hoje em dia somente os estabelecimentos mais tradicionais ainda se atinham aos clássicos.

É uma pena que o empreendedor tenha morrido pobre.

O seu processo industrial era mais fácil de copiar do que seus processos na justiça em obrigar os concorrentes a pagarem pelo uso da patente.

Mas ele não morreu pobre por causa disso. Fracassos fazem parte da vida de um empreendedor.

Ele só se esqueceu de continuar vivo depois da sua última furada.

Pois é, o moço morreu.

Mas sua invenção não.

Pelo contrário. Multiplicou-se feito um coelho, pulando de cidade em cidade, de planeta em planeta, até ocupar quase toda a galáxia.

Sabe quando uma criança aprende uma palavra nova e a usa até quando não faz o menor sentido? Então, quando absorventes íntimos e armações de óculos começaram a vir com neon, é porque estava na hora de parar.

E realmente pararam.

O povo enjoou tanto que o que antes era o ápice da moda, agora se tornara o suprassumo do mau gosto.

Exceto em um único lugar.

Adivinha qual.

Sim, ali mesmo.

A coisa tomou um rumo tão curioso em Neonelly que se tornou folclórico ao ponto de turistas visitarem a região justamente por causa das luzes. Havia estabelecimentos famosos, com áreas marcadas na calçada para melhores ângulos de fotos. Calcinha de Veludo, Bar do Pimenta, Mercado das Pulgas e Edifício Eletrônico eram alguns dos exemplos.

Sendo assim, com neon saindo pelas orelhas, Neonelly brilhava tanto ou mais à noite do que de dia.

E era por isso que Freya estava azul.

Nua, a vampira se recostava no espaldar acolchoado da cama em forma de coração, de onde podia ver pelo menos três reflexos seus: dois nas paredes e um no teto. Usualmente branca, ela era agora uma figura esmagada entre o ciano ao redor dos espelhos, o magenta da base do colchão e o branco das arestas do quarto. Isso sem contar as luzes do frigobar e de um mini-monitor cúbico de fósforo verde, exibindo o menu.

Pelas paredes, rebites dourados marcavam as fronteiras das placas pretas texturizadas em couro. O piso, também preto, porém sensível à pressão, deixava pegadas brancas fantasmagóricas que sumiam em segundos.

Há uma hora atrás, sua superfície era uma tela abstrata pintada com pés e joelhos leitosos. Peças de roupas caídas frouxamente aqui e ali compunham uma narrativa: começo, fim e meio.

Por fim, sobre uma mesa, era possível ver uma mochila de lona e uma bengala de laca riscada pelo neon reinante. O apoio da mão, em dourado, tinha o formato de uma cabeça de águia, cujo fio do bico parecia perfurar mesmo à distância.

O silêncio era reinante.

Estando as cortinas abertas, a passagem de um drone policial em forma de mini-zepelim desenhou o formato da janela contra as paredes do cômodo em cores que trocavam entre azul, vermelho e comerciais.

O símbolo da corporação competia com xampú para lobisomens, sangue saborizado para vampiros, lustra-chifres para demônios e outros produtos de nicho.

Uma vitória para os lobistas da área de propaganda e marketing.

Um incômodo para quem tentava dormir.

Pelo menos esse não tinha áudio. Assim, Freya o ignorou, focada que estava em seu texto. O tablet de leitura em sua mão não emitia luz, sendo uma tela de tinta eletrostática reflexiva igual papel, necessitando assim de luz ambiente para tornar-se visível. Fato esse ignorado pelos olhos da vampira, que perfuravam a escuridão colorida igual uma agulha.

Ou melhor, fato esse ignorado pelo olho da vampira. No singular mesmo.

Freya tinha sua única íris (hoje brilhando em azul-céu) passeando pelas letras enquanto a outra órbita era coberta pela placa negra de um tapa-olho eletrônico. Em seu centro, um buraco cilíndrico descia até o nervo ótico, devidamente protegido e preparado para receber sinais elétricos. Era para haver uma câmera ocupando esse espaço vazio. Quebrada, no entanto, Freya viu-se obrigada a deixá-la no conserto.

Ao seu lado, deitadas nuas na cama, duas criaturas recuperavam as energias após a intensa atividade.

Uma através do sono. A outra através da tomada.

Uma vampira e uma androide.

Mina e Kelly-2.

A primeira, uma amiga de longa data e amante ocasional; a segunda, uma boneca alugada com o mesmo grau de consciência de um pepino.

Sim, Kelly-2 não fazia ideia de que ela mesma existia. E muito menos que existia o quarto, a cama ou as duas vampiras. Seus sensores até indicavam a presença desses objetos e seres ao ponto de permitir uma interação eficaz (se é que você me entende) mas nada disso era processado emocional ou sensivelmente.

Kelly-2 não sentia sua própria existência.

E sentia menos ainda qualquer suspeita a respeito do que Freya tinha planejado para ela. Se o fizesse, se tivesse qualquer consciência do que estava por vir, o crime seria imediatamente enquadrado como "hediondo".

Daí o texto nas mãos de Freya.

A loira já havia cometido todo o tipo de delito, exceto assassinato. Sem a menor disposição para começar hoje, era preciso então ter certeza de que o que estava prestes a fazer não terminaria matando ninguém sem querer.

Piratas Espaciais - E a Consciência de HildaOnde histórias criam vida. Descubra agora