.:7:. Formigueiro
Um fato interessante sobre a Cidade do Neon: Neonelly é um clássico da arquitetura coberto de modernidade.
Tão coberto que às vezes termina soterrado.
Debaixo dos cabos e tubulações serpenteando as fachadas feito estações espaciais; sob a macarronada de cores primárias indicando estabelecimentos diversos; escondido nas duras sombras da iluminação pública de LED, edifícios de cem, duzentos, trezentos anos erguiam-se como torres tão altas quanto a tecnologia da época permitia. Torres cujos os estilos eram uma aula de história a respeito do povo que dominou a região nesse ou naquele período.
E o que a história nos conta sobre a atual civilização é que o povo adora uma megaconstrução.
Não precisa nem ser historiador para perceber. Imensos centros comerciais, torres residenciais, arcologias, blocos compactos de clubes e casas de espetáculo, tudo perfurando o céu feito uma floresta de aço, concreto e neo-materiais.
A própria prefeitura situava-se em uma pirâmide com mais de quinhentos metros de altura e salpicada de luzes de escritório. Só que nesse caso, apesar de inchada ao extremo, a administração pública não ocupava tantos metros quadrados assim. Apenas os andares finais eram reservados a ela. O resto era um labiríntico pot-pourri de empresas sentado sobre o maior mercado popular do planeta.
O famoso Mercado das Pulgas.
Cinco gigantescos andares em um total de mais de dez milhões de metros quadrados de barracas, lojas, vendedores ambulantes, templos, hotéis, bordéis, restaurantes, escolas, médicos, serviços de cartório, centro de refugiados, shoppings...
E, claro, tudo regado em neon. Muito, mas muito neon.
Neon de verdade.
Vidro e gás.
Talvez o último local onde se poderia encontrar mais tubos de vidro retorcidos do que MPE (Mana em Percursos Específicos).
Em resumo, o Mercado das Pulgas era uma cidade dentro de Neonelly. Uma cidade com sua própria população e suas próprias regras. Uma tese em antropologia. Um local que acolhia quem não era acolhido por mais ninguém e que acolhia quem não deveria ser acolhido de forma nenhuma.
Um local onde se podia desaparecer com objetos, pessoas ou consigo mesmo.
Propositalmente ou não.
Lembra da iluminação pública de LED? Então, aqui vai um fato curioso: a luz fria, azulada, é incômoda para praticamente todas as raças. Demônios, anjos, vampiros, humanos, elfos, anões, fadas, lobisomens, kemonos, enfim, ninguém gosta dessa porcaria fria na cara.
Restaurantes de comida rápida se valem de luzes sutilmente violetas para expulsar logo os clientes, enquanto que os mais chiques utilizam cores quentes com o intuito de criar ambientes mais aconchegantes. É uma estratégia válida para a maioria da população.
A maioria.
Porque há um grupo imune a essas táticas de manipulação.
Os mendigos.
Por quê?
Bom, porque eles não frequentam restaurantes.
Mas são afetados pela luz azul da mesma forma. Sabendo disso, a piramidal prefeitura resolveu o problema do excesso de indigentes em Neonelly trocando as lâmpadas amareladas pelas cor de assédio moral.
Ou melhor, transladou o problema.
Das ruas da Cidade do Neon para o Mercado das Pulgas, os mendigos eram a massa que unificava a todos. Do empresário ou executivo mais bem pago ao vendedor ambulante mais pobre, todos se viam cercados por uma horda de indigentes não importava aonde andassem. Como água, eles ocupavam os espaços entre os demais cidadãos, e, principalmente, os espaços vazios do Mercado, onde podiam dormir sem serem enxotados pela força policial.
Mais de cem mil criaturas sapientes saíam de dia e voltavam à noite em sua marcha diária em busca de comida, emprego, dinheiro, bebida e o que mais fosse necessário.
Mas apesar de numerosos, não eram apenas os mendigos que buscavam abrigo na gigantesca pirâmide. Dentro do Mercado das Pulgas havia vários mercados, sendo o imobiliário um dos mais proeminentes. Quem não podia arcar com os aluguéis caros da cidade, certamente encontraria um apartamento ali por um preço acessível.
Ou melhor, um "apertamento" por um preço estranhamente barato.
Enquanto os mendigos se valiam das escadas, poços de elevadores desativados, dutos de ventilação e outros cafofos mais discretos, os moradores à base de contrato eram encaixados em conglomerados sólidos de conjugados: paralelepípedos que iam do piso ao teto do primeiro andar do Mercado formando um labirinto de blocos.
Com alvarás para lá de suspeitos (quando tinham) as empreiteiras erguiam esses colossos de concreto nos espaços que sobravam e com a qualidade de quem quer lucrar com quem não tem opção.
Eram milhares de apartamentos por bloco.
Milhares.
Entre 1.500 à 3.000 unidades por paralelepípedo.
Um verdadeiro formigueiro.
Aliás, esse era o apelido da região. O nome original era Zona Habitacional Popular, mas ninguém chamava assim.
Formigueiro era bem mais gráfico.
Da janela das unidades, se viam mais janelas. Um rosto plano de concreto com centenas de olhos te encarando de volta em um padrão que seria monótono não fosse pela criatividade da vizinhança.
As roupas penduradas nas janelas somadas às tretas diárias e ao neon formavam uma textura rica em situações. Uma textura com cabos e tubulações sem manutenção em meio aos letreiros mais explícitos.
Mas por que havia letreiros em uma área residencial?
Porque o aluguel era cobrado para qualquer um que ocupasse o imóvel. Morar era apenas uma das opções.
Pense em atividades suspeitas ou de gosto duvidoso. Agora pense em atividades explicitamente criminosas. Pronto, eis aí sua lista do comércio vigente.
Era um lugar barra pesada, óbvio, mas nem tudo seguia um roteiro tão "família" assim. Não dá para se alimentar só de álcool e cocaína.
Pelo menos não por muito tempo.
Misturada à lista anterior, havia uma outra muito mais cotidiana, envolvendo itens básicos e mais amigáveis. Quem não adora os pães recém saídos do forno do Seu Juca; a coleção de roupas do brechó do 1.207 Bloco V ou uma unha feita pela Dona Maricota do 147 H?
Alguns mal saíam do seu bloco tal era a facilidade de acesso ao que precisavam diariamente.
Seja lá o que isso significasse.
Em resumo, se o Mercado das Pulgas era uma cidade dentro Nenonelly, o Formigueiro era uma cidade dentro do Mercado. Uma cidade dentro de uma cidade dentro de uma cidade.
E era justamente aí onde morava Greta.
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Piratas Espaciais - E a Consciência de Hilda
Ciencia Ficción*Vencedor do prêmio The Wattys 2022* !!REVISADO!! Freya é uma vampira que quer montar uma tripulação pirata. Mina é amiga de Freya e quer ajudar a salvar a vida de uma desconhecida. Greta, uma demônia, precisa salvar a vida da irmã. Hilda, a humana...