ℂ𝕒𝕡𝕚𝕥𝕦𝕝𝕠 𝟜: Fugindo discretamente (ou quase)

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Senti o calor do sol em minha pele, e seu brilho incomodando meus olhos. Os abri lentamente, dando de frente com Damian, que estava acordado e bem alerta, me encarando despreocupado.

-- Você também acabou de acordar? – perguntei, minha voz grossa e arrastada.

-- Não. – ele disse apenas, seus olhos ainda presos nos meus.

Engoli em seco e comecei a levantar, me esticando, e ele fez o mesmo. Eu estava doida de vontade de fazer xixi, então diminuí meus movimentos para não piorar. Me lembrava dos ocorridos de ontem e tudo o que eu queria fazer era enfiar minha cabeça num buraco e morrer de vergonha. Mas eu teria tempo para isso, havia problemas maiores para lidar no momento.

Precisávamos sair dali sem sermos notados, eu tinha que ir ao banheiro e ainda estar razoavelmente pronta para a hora da aula. Não só isso. Eu precisava urgentemente arrumar um jeito de explicar para o meu pai porque eu sumi e não voltei para casa.

Ele devia estar morrendo de preocupação.

Arrumamos nossas coisas em silêncio, ambos perdidos em seus próprios pensamentos. Queria poder ler sua mente, mas a lua nova só acabaria daqui a cinco dias, então tive de me aquietar.

"Acho que eu deveria me sentir culpada por ter aberto o bico ontem a noite. Mas não consigo. No fim, foi bom confiar esse segredo a alguém, e ele confiou em mim também, é justo." Pensei.

Olhei para mim mesma. Precisava de um bom banho e comida, de preferência amendoins.

Depois de arrumarmos nossas mochilas, nos escondemos atrás das cadeiras do fundo da sala e esperamos até chegar alguém para abrir a porta. Quietos e encolhidos, esperamos muito, até que alguém apareceu. Escutamos o som de passos, a porta sendo destrancada e seguramos a respiração, nos espremendo mais ainda por detrás das cadeiras.

Os passos andaram até o meio da sala e depois de, provavelmente, averiguar a organização do cômodo, saiu, deixando a porta aberta para arejar.

Nos esgueiramos para fora da sala, e demos uma pequena corrida até um corredor mais escondido da escola, onde podíamos respirar em paz. Quase desmaiei de alívio. Temi tanto ser pega...

Porém, algo ainda me incomodava.

-- Eu quero ir no banheiro, é urgente.

Ele olhou para ambos os lados e acenou com a cabeça, concordando.

-- Os banheiros daqui ainda não estão abertos. Vou ter que te levar até o dormitório. Você vai no meu banheiro e se organiza rápido que a aula não vai demorar para começar. Acho que dá para fingir que você só chegou mais cedo e arrumar algo coisa do refeitório.

Eu concordei, tentando apenas focar em não me mijar nas calças.

Respirei fundo e corremos para os dormitórios. Ele me levou para seu quarto e por sorte seus colegas já não estavam mais lá. Corri para o banheiro, e me tranquei lá imediatamente. Esvaziei minha bexiga e meus problemas se forma pela metade.

Escutei Damian bater na porta e reclamar:

-- Saí logo daí nanica, quer que sejamos descobertos? E o banheiro é meu e preciso dele.

Molhei um pouco meus cabelos para controlá-los sem um pente, e ainda com as mãos molhadas abri a porta.

-- Calma, ninguém vai me ver a menos que você grite anunciando para escola toda. O banheiro é todo seu, mas depois que se resolver aí, eu quero uma toalha emprestada, não vou entrar na escola fedendo não.

Ele revirou os olhos e entrou no banheiro. Fiquei esperando na porta, tentando organizar meus pensamentos, que agora eram ocupados na maioria por amendoins.

Mas o restante deles não era tão delicioso.

Eu não menti para Damian; eu vi meus pais morrerem, mas a diferença é que a doença que eles tinham já parecia despertar em mim de forma precoce. As dores ainda eram raras e fracas, mas sua frequência e intensidade aumentava a cada dia.

Pus minhas mãos no rosto, tentando ter isso fora de foco. É claro, poderia ser apenas o cansaço da vida começando a aparecer. Eu não durmo mais como antes, e agora as minhas preocupações e compreensão de mundo já não é mais a de uma criança. Às vezes era só paranoia.

Torcia para que sim.

Escutei Damian desligando o chuveiro, e ele logo saiu do banheiro, com o cabelo ainda molhado e pingando. Queira dizer que isso em nada me afetou, mas o meu cérebro fez questão de reforçar o quanto ele estava bonito.

Muito bonito.

Balancei minha cabeça e ele entregou-me uma toalha dobrada, que tinha cheiro de limpa.

-- Aqui, pode usá-la, é uma toalha extra. Só não demore uma eternidade lá. O café-da-manhã começa daqui a quinze minutos, e não quero me atrasar.

Acenei com a cabeça e entrei no banho, focando apenas me tirar o suor e ficar razoavelmente apresentável. Mas meu cabelo estava simplesmente impossível, então taquei o dane-se e usei o xampu do Damian que estava lá.

Me enxuguei e pus as mesmas roupas, iria bastar para disfarçar. Saí do banheiro e encontrei Damian sentado na cama, lendo algo enquanto me esperava. Ele levantou o olhar e me encontrou o observando, quase morri de vergonha, me encolhendo.

Ele levantou e me entregou um casaco.

-- Use ele e o capuz. Desse jeito vamos conseguir sair sem chamar muita atenção. Assim espero.

Coloquei o casaco e tentamos agir naturalmente, mas tudo foi por água a baixo quando no meio do caminho para a liberdade encontramos os amigos de Damian, que reconheceram o casaco do metido, que outra pessoa estava usando.

É, devíamos ter previsto isso.

Eles vieram por trás e tiraram o capuz da minha cabeça, e a reação deles seria extremamente engraçada se eu não estivesse cem pânico.

-- Chefe? Porque essa garota 'tá usando a sua roupa e está no dormitório masculino? Vocês...?

-- Claro que não! — respondemos em uníssono, trocando olhares constrangidos pela suposição.

-- Então o que está acontecendo aqui? Chefe, espero que você tenha uma boa explicação.

-- É claro que tenho! – Ele disse, e seus olhos correram até mim, como se falasse "ter, até tenho, mas se eu falasse estaríamos ferrados". Ele voltou o olhar para seus amigos e inventou:

-- É que... Anya chegou mais cedo, e me pediu um casaco porque estava com frio, só isso. Aí eu pedi 'pra ela esperar aqui que eu ia buscar.

Eles pensaram um pouco e depois comentaram:

-- É, essa história até faz sentido, exceto que está fazendo 29 °C hoje, não sei como ela pode estar com calor.

-- São os hormônios. – retruquei rapidamente, mesmo sentindo que já estava assando dentro daquela roupa. – Daqui a pouco passa.

Ewen e Emile trocaram olhares suspeitos e apenas deram de ombros, seguindo seu caminho e nos deixando em paz.

Respiramos fundo, aliviados, e trocamos olhares de "foi por pouco". Corremos até o refeitório e conseguimos enrolar o Matheu, que deixou que eu comesse lá. O refeitório tinha ar-condicionado, e acabei ficando com o casaco mesmo.

A única complicação foi tentar explicar a Becky o porquê de eu estar com o casaco do Damian. Repeti a mesma balela, mas ela não pareceu convencida. Pelo contrário, agora estava mais convicta ainda de que Damian tinha um abismo por mim.

Preferi nem falar o que tinha rolado na noite anterior, ela não largaria do meu pé nunca mais.

In my Mind -- Anya X DamianOnde histórias criam vida. Descubra agora