VIII Rompendo a casca: na estrada

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Abandonar aquele lugar era como abandonar minha mãe e as muitas memórias boas, ao menos era assim que eu e meus irmãos sentimos, parece que estamos dando as costas para ela e tudo que tínhamos vivido ali, era doloroso, triste, avassalador, porém tinha compreendido que era necessário. Não há mudanças sem dor, nem novos começos sem mudanças. Era difícil aceitar, mas tinha que ser feito, era muita coisa para enfrentar de um dia para o outro. Um dia deitamos com tudo em paz, tranquilo e normal e no outro acordamos com as coisas desordenadas. Perdemos muita coisa em poucos dias, ninguém compreendia nada, é difícil dizer adeus quando não se sabe ao certo o que está acontecendo e nem o que irá acontecer.

Com muita dificuldade organizamos as coisas. Na minha mala, as roupas, um boneco que mãe fez para mim quando tinha três anos, agora levava para guardar boas recordações; meu cobertor; e dois livros que ficavam na prateleira da sala. Não sei o que havia na mala de meus irmãos, mas nada do que levássemos seria de fato relevante quando todo o mais ficaria para trás.

Aproveitei para dar o último passeio nas redondezas de casa, meu coração estava tão apertado, custava acreditar em tudo que acontecia. Tem momentos complicados em nossa vida a qual nada faz sentido, nem mesmo nossa existência, onde todas as respostas parecem sumir, e todo o pensamento esmorecer. Será que encontraria árvores como aquela, um pôr do sol que se esconde na colina como o deste lugar, será que teria este vento suave e às vezes avassalador, os pássaros que tanto me ensinaram e me deram lições valiosas, o campo, livre e aberto? Teria como chamar outro lugar de lar? Não sei responder, mas irei descobrir, espero que encontre um lugar melhor que este, mas mesmo que encontre um tão bom o quanto, encontrarei histórias semelhantes com a que construí nesse humilde lar? Acho difícil, nenhum lugar se compara a este.

Umas horas após o almoço o pai nos chamou, agora sim, era a despedida final. Saímos olhando cada detalhe da casa, a madeira velha e desgastada, os utensílios de barro feitos por mãe, as prateleiras pintadas por uma grande artista, os bancos de madeira, a cadeira reclinável do pai, a mesa de madeira no canto da cozinha. Pela primeira vez encostamos a porta de madeira velha e desbotada e trancamos por fora com uma corrente e um cadeado. 'Enfim, não esperava esse adeus, ainda mais agora.' Nem acredito que me despedi daquele lugar, do meu mundo particular, nosso lar. Fechamos a porteira, agora era definitivo, subimos na carroça, percebi que Ozannia evitava olhar para trás, já eu não conseguia parar de olhar para nossa humilde casa e queria ficar com aquela doce imagem fixa para sempre em minha memória. O cavalo começou a andar devagar, depois foi aos poucos acelerando. Minha morada ia ficando cada vez mais distante. Contemplar a casa e o rio em uma só paisagem foi a melhor e última imagem que podia ver.

Agora seguimos a estrada, reta e sem fim, nossa humilde casa já ficará para trás. Para onde íamos? Não sei, aquele lugar era tudo o que conhecia. Minha pergunta era, existiam outros lugares? Se sim, como seria? Será que é diferente do meu lar?

"Dizer adeus nunca é uma tarefa fácil, pois nada seria capaz de transmitir a lacuna que este momento nos causa. Deixar o conforto, o que foi construído, largar as bases, sair do ninho, ou ser arrancado do solo, nunca é agradável, na verdade é desesperador, passa a sensação de morte e fim.

Buscar respostas quando nada parece fazer sentido, quando as coisas parecem desordenadas é uma tarefa com inícios, porém sem términos.

Assim como um animal que está gravemente ferido sucumbe a dor, é necessário deixar o processo de cura finalizar para começar a compreender o porquê de algumas coisas serem, se moverem e estar onde estão. Quando estamos cegos e presos a dor nada faz sentido, nada parece ter uma resposta, tudo parece injusto e inadequado ao momento. E mesmo que as coisas estejam em nossa frente, não vemos, por que a dor nos cega. Se neste exato momento você sofrer uma lesão grave e for levado ao hospital, se questionado o trajeto até o local provavelmente você tenha bagunças temporais, e não saiba descrever com exatidão o que acontecia no ambiente, por que a dor nos saqueia, nos rouba de nós mesmos, parece nos deixar limitados e tontos. É preciso deixar o processo de cura acontecer: "os remédios ( os fatos, o 'curso da vida' (como em um enredo), as circunstâncias, detectar os problemas e suas feridas), o repouso (o tempo, se perdoar, se conhecer, sem medo de se perder em si mesmo), as pessoas aptas a ajudar". Para que possa voltar a enxergar as coisas como são novamente. Ainda assim na vida teremos muitas coisas sem respostas, outras respostas que não são nem de longe o que queríamos ouvir; e algumas verdades aberta e franca a qual nunca aceitaríamos. É necessário estar aberto não ao que você quer ouvir, mas ao que é necessário ser ouvido.

A dor tem esse poder de potencializar ou neutralizar tudo o que está em nossa volta, pois nossa dor é parte de nós.

É necessário sentir a dor, deixar a marcha da vida seguir...

No desenvolvimento do processo encarar a verdade e se permitir ficar cara a cara consigo e seus monstros de forma mais honesta o possível, para depois começar a respirar um pouco mais leve. Após uma forte tempestade quase sempre vem a calmaria."


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