Capítulo 6

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"the 30th"


Matilda aproveitou a viagem (ou tentou), ignorou totalmente o que havia acontecido e só deixou para pensar depois, fora do alcance dos olhos tão amorosos de sua vó.

Ela sentiu culpa. Deixou ser levada, desmaiou e não contou pra ninguém. Seu corpo corroía em vergonha e nojo. Ela precisava contar pra alguém, mas tinha tanto medo. Confiava na Eduarda, mas não queria que se preocupasse consigo. E também tinha Laura e Bianca, duas pessoas que ela se sentia bem, porém algo a parava.

Suas amigas perguntaram sobre a viagem, Matilda contou tudo - ou quase tudo.

- Eu preciso contar uma coisa, mas estou com medo. - Matilda disse em um surgimento súbito de coragem, mesmo que suas mãos tremessem em cima de suas pernas.

- Por que? - Laura perguntou.

- Não sei... - Respondeu Matilda, olhou para os lados e abaixou sua cabeça.

- Matilda... - Eduarda chamou, e ela levantou sua cabeça. - Tenho uma amiga que vai ficar com a gente hoje no intervalo, tudo bem?

- Claro, Du. - Matilda respondeu.

Por que ela se incomodaria?

- Nos conte. - Bianca a lembrou.

Antes que ela possa começar, a amiga de Eduarda chegou. Era linda, Matilda teve que admitir. Se cumprimentaram e ficou um clima tenso.

- Vocês prometem não contar pra ninguém? - Ela perguntou, os olhos aflitos buscando afirmação de todas. - Ok... meu tio... meu tio... - Gaguejou.

Não conseguiria.

Uma mão foi estendida e ela levantou os olhos. Era a amiga de Eduarda, Matilda segurou a mão com medo. Não entendeu o motivo.

- É um apoio. - Ela disse.

- Oh! - Matilda só conseguiu reagir assim. Apertou a mão alheia e tentou continuar. - Meu tio me... estuprou. - Soltou de maneira baixa.

- O que? - Bianca disse, exaltada.

- Como assim? - Laura perguntou.

Eduarda e sua amiga só ficaram a olhando.

- Ele me levou pra casa dele e me estuprou, eu desmaiei. - Matilda respondeu, sua mão apertou mais a outra mão. - E a culpa foi minha.. - Sua voz fraquejou ao falar.

- Por que? - Laura perguntou.

- Eu segui ele, eu não disse "não" quando ele me chamou pra ir na casa dele mesmo tendo um pressentimento ruim.

- Isso não é sua culpa. Você não queria, ele não ter parado é culpa dele. - Laura disse.

Matilda olha nos olhos de cada uma e não consegue achar julgamentos. Suspira um pouco aliviada.

- Mas..

- Não! Se eu tivesse um namorado, a gente estivesse fazendo sexo e eu não quisesse mais, se ele não parar é estupro. Forçar uma relação sexual, independente do lugar, hora e grau de parentesco, é estupro! - Laura a interrompeu.

Matilda suspira, não conseguia aceitar isso. Sua mente gritava que a culpa era sua. Ela tinha nojo de si. Tocaram em suas partes íntimas de novo.

Não aguentava mais.

O sinal bateu, todas levantaram e ela soltou a mão da menina. Não sabia seu nome, mas era grata pelo apoio. Todas foram andando e Matilda ia atrás cabisbaixa. Uma mão a segurou e ela virou encarando a tal menina.

- Eu tive um namorado que me estuprou. Eu não quis, ele continuou. Acha que é minha culpa? Eu que estava errada? - Matilda negou diversas vezes com a cabeça.

- Não!! Que coisa horrível, não. - Disse, quase ao desespero. - Eu...

- Não foi sua culpa. Sei o que está dentro da sua cabeça, não confie nos seus pensamentos. - Ela disse. - E meu nome é Heloísa, prazer.

- O meu é Matilda. - Quase sussurrou. - Eu sinto muito pelo o que aconteceu com você... - Disse, caminhando ao lado de Heloísa.

- Eu também sinto muito pelo o que aconteceu com você. Fica bem, sim? - Ela pediu, e segurou suas mãos. Matilda concordou. Elas se separaram e cada uma foi pra sua sala.

Matilda viu Heloísa novamente na saída. Estava conversando com Eduarda, as duas conversavam animadas sobre alguma coisa específica.

Como ela era tão feliz mesmo após o que tinha acontecido com si?

Matilda não entendia.

Ela não conseguia vestir roupas que mostrassem sua pele. Ela não conseguia deixar que pessoas se aproximassem o suficiente para conhecê-la. Ela não confiava em quase ninguém.

Tinha medo de sair. Tinha medo de multidões. Tinha muito medo de tudo.

Olhou para Eduarda que mostrava algo em seu celular, sorria. Matilda sorriu junto, como se segurar? Era inconsciente.

O sentimento de paixão tinha passado, mas ainda tinha um carinho gigantesco pela Eduarda.

Foi sua salvadora.

Olhou para Heloísa, era do mesmo tamanho de Eduarda, sorria também. Tinha um sorriso lindo, os olhos fechavam.

Percebeu que encarava demais quando ela virou o rosto e a olhou. Acenou com a mão e Matilda acenou de volta envergonhada. Provavelmente ela iria falar alguma coisa, mas antes disso acontecer Matilda seguiu seu caminho a pé até a estação de ônibus. Gostava de ir andando sozinha, às vezes ouvindo música ou às vezes tentando entender seus pensamentos.

Hoje era o segundo caso.

Matilda sabia que havia muitos casos de abusos sexuais no país, e não tinham o número exato porque mulheres tinham medo de denunciar.

Matilda era uma delas.

Porém ela não sabia que esses casos poderiam estar tão próximos. Heloísa estudava na mesma escola e havia passado por isso. Podia acontecer com todo mundo e a qualquer momento.

Seus pensamentos foram interrompidos com alguém segurando seu ombro.

- Eu sou menor que você, não consigo acompanhar seus passos. - Heloísa disse, respirando pesado.

- Eu não sabia que você estava atrás de mim e que me seguia, ou que era pra te esperar. - Respondeu.

- Eu te chamei! - Exclamou. Matilda não tinha ouvido, estava focada em seus pensamentos.

- Quer água? - Disse, estendendo uma garrafinha de água para Heloísa que não recusou, apenas virou rapidamente na boca. - Vai pra onde?

- O mesmo lugar que você. - Respondeu.

Caminharam juntas em silêncio, apenas comentavam coisas superficiais que viam nas ruas.

Matilda ainda pensava no que poderia ter acontecido com Heloísa e queria entender como ela lidava tão bem.

- Como você consegue lidar tão bem com tudo que aconteceu? - Matilda simplesmente soltou. Percebeu que Heloísa a olhou pelo canto do olho, mas continuou encarando o chão a cada passo dado.

- Terapia. - Respondeu. - Contei para os meus pais e eles resolveram me levar. Faço terapia há dois anos.

Foi como um soco em seu estômago.

Seu pai não a ajudava dessa forma.
Seu pai nem acreditava nela.
Sua mãe não sabia.

Matilda não tinha suporte familiar, quem dirá psicológico.

- Que bom! - Ela conseguiu dizer. - Chegamos... - Disse, pra mudar de assunto.

- Meu ônibus já vai sair, a gente se fala por aí! - Heloísa se despediu, e saiu andando até seu ônibus.

Matilda continuou parada a encarando.

Gostou de Heloísa. Queria se aproximar mais.

E iria.

MatildaOnde histórias criam vida. Descubra agora