Esse cápitulo foi bem doloroso escrever, mas um dos que mais gostei escrever.
É um cápitulo ideologico, traz muitas concepções e fala sobre a religião africana mais conhecida e trazida para o Brasil, que é o Candomblé, esse capitulo foi necessário para poder dar o pesar da história e logo mais entenderão porquê ele existe.
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-Dona Helena, isso é muito dificil - repetia o garoto enquanto refazia a conta pela décima vez seguida.
-É dificil, mas você consegue - encorajou a ruiva sorrindo - você está indo tão bem, é só multiplicar o seis agora.
-Certo - o garoto rabiscou algumas coisas no papel e mostrou para a ruiva que sorriu e beijou-lhe a testa suavemente.
-Está certo, viu? Eu disse que você conseguia.
-Você é incrivel, dona Helena - comentou o garoto estupefato.
-Sem o dona, e você que é incrivel, conseguiu fazer essa conta sozinho, tem melhorado bastante.
-Isso graças à senhora.
-Tive uma ideia ótima, que tal irmos para a senzala hoje? Terá uma reza especial para todos os orixás.
-Ori... Quem?
-Pelo que eu entendi orixás são forças da natureza, são energias que nos regem todos os dias, os negros disseram que muitos são sincretizados com santos católicos, então o que acha?
-Parece divertido... Mas e se meu pai descobrir?
-Vamos assim que eles dormirem e ficamos só um pouco.
-Tá bem - o garoto sorriu animado e voltou a pegar o lápis - sempre quis ver como era a senzala, mas o papai disse que não devia me misturar com os negros, que eles não são civilizados...
-Tudo bobagem, seu pai tem a mente muito fechada, olha, vou te contar uma história.
"Era uma vez, há muitos anos, um jovem negro à beira do rio, ao longe chegou um homem branco e ao avistar o homem se aproximou e disse:
-Você, negro impuro, tocastes na àgua que iria beber?
O negro nada respondeu, apenas ficou olhando para o homem branco a sua frente, nunca havia visto homem mais branco.
-Não respondes? Responda-me - gritou o homem branco erguendo sua mão e lhe dando um tapa.
O homem negro levantou-se e deu meia volta, mas ao fazer isso sentiu algo frio entrar em seu corpo e um liquido quente escorrer.
O homem branco havia matado o homem negro, esse homem soube bem depois que o negro era um rei africano e que não falava a mesma lingua que ele, portanto não o entendia.
E afinal, quem era o civilizado? O homem branco que matara o negro apenas por sua cor ou o homem negro que não fez mal algum?"
O garoto olhou para o teto por alguns segundos visualizando a história em sua mente, imaginou-se no lugar do negro e no lugar do branco.
-Acho que... Os dois são civilizados... Cada um de sua forma, educados de uma maneira... Porém suas ideias são opostas...
A ruiva sorriu com a resposta do garoto e sentou-se no chão.
-É isso que os homens não entendem, que o certo e o errado é relativo, assim como o conceito de civilização - a ruiva deitou no chão gelido e ficou encarando o teto.
-Papai disse que os negros são escravos porque cometeram pecados - o garoto deitou-se ao lado da mulher e ficou encarando o teto, talvez a procura de respostas.
-E quem é que nunca cometeu pecado? Se fosse assim todos seriam escravos, não importa a raça ou a cor.
-você cometeu pecados? - Ricardo virou-se para a ruiva.
-Se não tivesse cometido não estaria aqui.
-Não, a senhora deve estar aqui pra ajudar as pessoas, a senhora é o anjo que vai salvar os homens...
-Rick... Não sou um anjo ou um super herói, não tenho poderes para salvar essa gente - a ruiva riu e acariciou o cabelo do garoto moreno.
-É sim, a senhora é o anjo que o homem lá de cima mandou para esse lugar sem dono.
-Não diga bobagens, Rick, não sou anjo algum.
-Antes da senhora chegar o papai e a mamãe viviam brigando, gritavam sem parar, papai descontava tudo nos escravos e eu os ouvia gritar de dor a cada chicotada, mamãe saia as escondidas e voltava na manhã seguinte, e eu rezava para que o homem lá de cima enviasse um anjo para ajudar, então a senhora chegou e papai se acalmou, a senhora é o anjo que mandaram.
-Não sou um anjo, meu amor, sou apenas uma pessoa comum como você - disse Helena erguendo o tronco para se sentar - se eu realmente fosse um anjo certamente eles estariam vivos.
-E eles estão vivos, dentro do seu coração, enquanto a senhora os amá-los eles permanecerão vivos em sua memória.
-Rick... Se tudo fosse tão fácil assim... - Helena abraçou o garoto e puxou-o para seu colo - queria poder revê-los.
-Então vamos orar para que você possa vê-los - o garoto se ajeitou e ergueu suas mãos até o rosto - querido papai do céu, obrigado por sempre me ouvir quando converso contigo de noite, obrigado por me mandar esse anjo, sei que ele deve fazer falta onde o Senhor está, mas é por uma boa causa, eu lhe peço que ajude esse anjo que tantos tem ajudado, sei que sua bondade é infinita e faria tudo para ver tua filha feliz, ela só quer ver aqueles que ama, não acho que seja pedir muito, papai do céu, por favor, realize meu desejo, amém - Helena apenas ouvia em silêncio, as lágrimas quentes escorriam-lhe pelo rosto e seus braços apertaram o garoto contra si em um abraço caloroso.
-Acho que o anjo aqui é você.
Os dois ficaram conversando e estudando por um bom tempo até anoitecer e os senhores dormirem.
Quando isso aconteceu os dois sairam silenciosamente do quarto e seguiram para fora da casa, andaram até a senzala encontrando os negros ajoelhados e rezando.
-Laroyê Exu, Exu a mojuba - disseram o negros ao final da primeira reza e todos se ergueram cantando algo calmo e tranquilizante.
Helena e Ricardo se aproximaram de um negro que estava afastado, era o mais velho do engenho e já se encontrava debilitado, por isso não participava da roda com os outros negros.
-Senhor João - saudou a ruiva dentando ao lado do velho - poderia nos explicar...
-Claro, minha filha - o velho sorriu e como se fosse um segredo sussurrou-lhes - Exú é o orixá da felicidade, é o mensageiro de todos os orixás, é ele quem abre os caminhos e é o primeiro a ser saudado, sem Exú, filha, não podemos fazer nada.
Os três observaram algumas mulheres entrarem na roda, enquanto uma cantiga era proferida, o vento soprou forte e as mulheres rodaram e rodaram, seus braços balançando no ar como vento, era uma dança belissima que hipnotizou os dois.
-Essas são Iansã e Oyá, as senhoras do vento, guerreiras, das chuvas, é para elas que cantamos e homenageamos quando chove ou relampeja - explicou o negro - vocês chamam ela de Santa Bárbara.
Helena sorriu e quando olhou para frente uma das mulheres estava lá, seus braços cortando o ar e rodopiando.
-Eparey Oyá - saudou o velho ajoelhando-se e abaixando a cabeça em forma de respeito.
Helena fez o mesmo sendo imitada por Ricardo, a mulher danço ao redor deles e parecia que o vento os rodeava, dançando junto com a mulher negra.
-Ela estava nos abençoando com sua dança - explicou João assim que a mulher se afastou.
Quando Helena foi comentar algo sentiu braços fortes a puxarem para trás.
-Você está proibida de vir para cá e traz o meu filho para essa merda? - disse o senhor do engenho rispido a puxando contra si com força.
-Está me machucando - falou Helena fechando os olhos devido a dor.
-Ricardo volte para casa, tenho assuntos a tratar com essa mulher - o garoto olhou para a ruiva que assentiu para que ele fosse e o moreno seguiu para a casa grande - venha.
O homem a levou para longe, amarrou-a contra um poste de madeira e arrancou-lhe as roupas.
-Não se pode confiar nem em brancos, quem dirá nos negros - o senhor retirou um chicote de três fitas grossas de couro e chicoteou a pena esquerda da ruiva que gritou ao sentir a ardência em sua pele.
E mais outra chibatada veio logo em seguida, desta vez em sua perna direita, onde deixou um vergão avermelhado e dolorido.
Foram ao todo 60 chibatadas, muitas causando ferimentos que sangravam, o corpo da ruiva ficou coberto de sangue e marcas avermelhadas, tudo lhe ardia, parecia queimar, estar sendo jogada em uma fogueira.
-Isso é para aprender a seguir as regras e você vai trabalhar com os negros no canavial, já que gosta tanto assim de ficar com eles - o homem olhou para Helena e deu-lhe um tapa no rosto - e isso é para não se esquecer.
Após dizer isso o homem deu as costas e se afastou, deixando a ruiva amarrada e nua, suas feridas expostas ao relento e as lágrimas de dor e humilhação escorrendo-lhe a face.
-Socorro, ajude-me, por favor - implorou a ruiva soluçando, mas não havia ninguém por perto que pudesse ouvir seu pedido - por favor, não quero morrer assim... Meu filho... Ele... Não posso deixar os dois assim... - a imagem do menino negro surgiu na mente da ruiva e seus soluços se tornaram mais doloridos e suas lágrimas mais pesadas, cada gota parecia pesar uma tonelada.
E foi chorando convulsivamente que a ruiva adormeceu no chão de terra, duro e gélido, as lágrimas secaram em sua face e a dor era insuportável.

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Seja meu anjo
De TodoUma jovem ruiva se vê longe de casa, rodeada por homens estranhos, em um grande navio pirata, quanto tempo a pureza de seu coração e corpo vão conseguir aguentar a crueldade que seus olhos irão presenciar? Com a pureza de um anjo a jovem ruiva terá...