Extra III - A Flor e Os Cabelos de Fogo

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Halima estava acordada há algum tempo, o que era estranho, levando em conta que havia passado o dia anterior inteiro visitando Yuren e Rohan. Ahmose, por outro lado, ainda deveria estar dormindo.

Caminhou pelo caminho de pedras recém reconstruído e percebeu que a população de Ilhevéu era admirável, pois toda a destruição pela qual passaram parecia apenas uma realidade distante. Todos os edifícios, ruas, estátuas... estavam de pé novamente.

Claro, havia outras coisas a serem consertadas, mas era como se a paz estivesse quase toda reconstruída.

Caminhou até a casa de Ahmose e sentou-se no banquinho de frente para ela, percebendo que não sabia ao certo o motivo de suas pernas terem a guiado até ali. Talvez porque o rapaz era o único que a entendia? Viver por tanto tempo com alguém em seu corpo e mente não era fácil... e parecia ainda mais difícil explicar para qualquer outra pessoa.

— Ah, Pitica... — Disse Halima, surpresa ao ver a bolinha de pelos voar em sua direção e cumprimentá-la com um barulhinho animado. — Ahmose está em casa?

A criaturinha chiou positivamente.

— Está dormindo?

Um aceno positivo.

— Ah... entendo... — Halima então suspirou alto e acomodou Pitica em suas mãos, acariciando-a com cuidado. A criaturinha praticamente ronronou, fechando seus grandes olhos brilhantes e expressivos.

Resolveu ficar ali por um tempo, apenas esperando. Deitou a cabeça no poste ao lado onde resolveu também fechar os olhos, torcendo para que pudesse apenas dormir bem.

Desde que seu corpo voltou a ser apenas seu, Halima parou de sonhar. Não havia sonhos bons, nem sonhos ruins, apenas deixaram de acontecer... além disso, não dormia muito bem, dormia entre quatro ou cinco horas por noite, o que a deixava cansada.

Nenhum curandeiro e nenhum mago sabiam como ajudar. Talvez fossem sequelas de ser um receptáculo e era impossível saber se haveria algum tipo de cura ou não. Pelo menos era dona de si mesma.

Quando Ahmose abriu a porta de casa uns bons minutos depois, Halima abriu vagarosamente seus olhos se encontraram. Os olhos grandes vívidos com seus olhos menores e cansados.

— Está parada aí há quanto tempo?

— Ah... acho que uns quarenta minutos.

— Isso tudo?! — Ele parecia chocado.

— Não queria te acordar. — Respondeu com sinceridade.

Ahmose piscou algumas vezes e sentou ao seu lado sem hesitação, olhando para um ponto a frente. Ambos permaneceram em silêncio, o que também era comum, principalmente nos últimos dias, mas não trazia um sentimento estranho, trazia apenas um grande conforto.

As pessoas caminhavam para lá e para cá, mas a parte onde se encontravam parecia bem mais vazia naquele horário, passando uma sutil sensação de privacidade.

Então, Ahmose deslizou o corpo para o lado e deitou a cabeça em seu ombro, fechando os olhos e respirando profundamente, deixando seu corpo relaxar novamente. Então Halima deitou a cabeça nos cabelos trançados, abrindo um sorriso tão delicado que sequer havia notado em si mesma.

— Quer dormir aqui em casa? — Ahmose perguntou com a voz baixa, sonolenta.

— Tudo bem por você? — Sabia que não deveria responder uma pergunta com outra, mas queria ter certeza que não estaria atrapalhando.

— Sabe que sim. — Ele respondeu com um tom alegre, como se também sorrisse.

Não havia nenhum tipo de segundas intenções naquele pedido. Não haveria problemas se houvesse, mas Ahmose não parecia se interessar por coisas assim e Halima não fazia questão.

Se conheciam desde pequenos, quando tinham entre quatro e cinco anos. Halima viu Ahmose se tornar uma pessoa cada vez mais doce, feliz, e seu coração criou um sentimento diferente... estar ao seu lado era como estar em casa.

Halima foi a pessoa que compreendeu quando Ahmose simplesmente disse que se sentia feliz quando o confundiam com uma garota, quando um pouco mais novos.

— Não importa, na verdade. — Dizia. — Ele... ela... está tudo bem. Pode me chamar como quiser.

Foi o que ela lhe disse, tempos atrás... antes de terem seus corpos tomados. Watsana, vez ou outra, conversava consigo... o que tornava as coisas um pouco menos desesperadoras e, apesar de odiar a deusa por ter possuído seu corpo, ela respondia suas perguntas e tentava lhe fazer companhia. Não que isso apagasse os danos que foram feitos...

Vocês tem uma conexão. — Foi o que Watsana respondeu quando lhe perguntou o motivo de terem sido possuídos. Por que Ahmose também? Por que Ahmose deveria sofrer junto? — Essa conexão é como a nossa...

Halima demorou para compreender o que Watsana queria lhe dizer, mas ao beijar a testa de Ahmose, que retribuiu com um selinho em seus lábios, começou a entender.

Ahmose a olhou e segurou uma de suas mãos, acariciando-as entre as dele. Por mais que tivessem a mesma idade, Ahmose tinha mãos menores e eram também salpicadas de branco, o que fazia Halima querer beijá-las, e assim o fez.

Ahmose sorriu com o gesto e também beijou seus dedos, entrelaçando-os nos dele. Então, ficaram de pé e adentraram a casa humilde e decorada com flores e quadros, talvez fosse ainda mais ajeitada que sua própria casa que, na verdade, não tinha tantos enfeites.

Halima tinha vergonha de admitir que gostava de ficar mais na casa de Ahmose do que na sua.

— Halima. — Chamou a moça.

— Hm?

— Não quer se mudar logo para cá?

— Uh...?

— Você passa mais tempo aqui. — Disse Ahmose, dando uma risadinha. Cada dia mais parecia aquela pessoa alegre de antes... o brilho em seu olhar voltava e sua doçura e sinceridade também. — Não é mais fácil ficar aqui comigo?

— Eu... ah... — Halima engoliu seco, sentindo o coração bater forte.

— Está com vergonha, não está? Seus batimentos cardíacos aumentaram.

— Estou... — Admitiu, tentando esconder o rosto em meio a seus cachos cor de fogo. Ahmose então levantou um pouco o corpo e tirou seus fios de cabelo do caminho para que se olhassem novamente.

— Ficaria feliz aqui comigo? Seja sincera, Halima.

— Sabe que sim... você faz perguntas como se não soubesse minhas respostas...

Ahmose deu uma risadinha animada e beijou a ponta de seu nariz, fazendo Halima apertar sua cintura e morder os lábios, ainda mais envergonhada.

— Vamos comprar algo para comer na rua depois?

— Está com fome?

— Um pouco, mas ainda quero dormir um pouco mais.

— Não quer que eu prepare algo hoje?

— Não, quero passear com você. — Halima sorriu com aquela pequena confissão e concordou com a cabeça.

Então, ambas entraram no quartinho e deitaram sobre a cama macia. Ahmose logo a abraçou, encolhendo o corpo contra o seu e Halima prontamente o envolveu, puxando-a para si.

Halima não era de muitas palavras, mas estava tudo bem, Ahmose a compreendia e seus corações eram conectados o suficiente. Aquele amor não precisava de esforço, não necessitava de um grande fogo. Era leve e calmo, assim como uma folha flutuando sobre a água. 

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