Untitled Part 30

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Coisas que racham

Do lado de fora da sala de aula, Julia esperava por mim com as mãos na cintura.

— Meu Deus, você é uma idiota. Você é uma idiota,

sabia?

— Eu sou uma idiota?

— Annemarie está comendo todo aquele pão naquele emprego idiota que você arrumou

para ela. Ela não deveria comer nada disso. Idiota.

— Não fui eu quem arrumou o emprego para... Nem sei do que você está falando!

— Ela tem epilepsia, idiota. Sua completa idiota! O pai dela prepara uma dieta especial.

Ele faz comida especial. Ela não pode comer pão nem tomar refrigerante.

— Não pode?

— Não. Não pode. Idiota. E, por sinal, qual é o seu problema comigo? Eu realmente

gostaria de saber.

— O quê?

— Seu problema. Comigo. Qual é?

— Além de você ter me chamado de idiota seis vezes no último minuto? Além de você

ter jogado um elástico na minha cabeça?

Ela ignorou tudo aquilo como se eu estivesse falando de detalhes bobos.

— Estou me referindo a bem antes disso. Você sempre me odiou. Você me olha de cara

feia desde, sei lá, o terceiro ano! Agora vai fingir que é mentira?

Eu a encarei. Senti algo que havia começado no meu estômago subir para o rosto, e

sabia que quando chegasse lá, eu ia ficar bem vermelha e ouvir algo como o oceano dentro

de uma concha, que é o que acontece quando fico em uma situação difícil. Se não choro,

fico vermelha e escuto o oceano. É perder ou perder.

— Do que você está falado? — perguntei.

— Não tenho ideia — disse ela. — Realmente não tenho. Mas uma pessoa sabe quando

alguém a odeia. Pelo menos eu sei!

Ela levantou o braço e seu pequeno relógio prateado voou do pulso e foi parar no

chão, fazendo um barulho. Um barulho agudo, de algo se quebrando.

O precioso relógio. Não sinto orgulho disso agora, mas aquele som, que ecoou pelo

corredor inteiro, me deixou feliz. Mordi meu lábio inferior para não rir.

Julia se abaixou para pegar o relógio. Achei que ela começaria a chiar, mas apenas o

pegou nas mãos e olhou para ele. Uma série de pequenas rachaduras cobria a parte da

frente, como uma teia de aranha.

— Ah, que ótimo. — Ela estufou as bochechas e soltou o ar devagar. — Este dia está

uma droga — disse, e depois foi embora.

* * *

Na volta para casa, peguei-me novamente caminhando meio quarteirão atrás de Sal. Já

sabia que não adiantava correr e alcançá-lo: ele só ia ficar olhando para seus tênis sem falar

nada. Então fiquei observando enquanto ele andava com seu gorro azul-marinho,

balançando a cabeça como sempre faz quando anda. Acho que ele pensa que aquele gorro

o faz parecer durão, pois o afunda até cobrir as sobrancelhas.

Então Marcus saiu pela porta amassada ao lado da garagem, usando aquele casaco verde

do exército de sempre, e começou a descer o quarteirão na direção de Sal.

Mesmo meio quarteirão atrás, pude ver Sal contrair o corpo e diminuir a velocidade.

Eu sabia o que ele estava fazendo. Estava procurando uma saída. Será que ele ia fingir que

precisava atravessar a rua de repente? Que acabara de lembrar que precisava comprar

alguma coisa no mercado da Belle? Mas era um pouco tarde. Marcus estava quase

chegando.

Eu poderia tê-lo chamado naquele momento. Seria fácil. Ele teria uma desculpa para se

virar e se afastar de Marcus. E então Marcus poderia parar e falar comigo por um instante,

e Sal veria que estava tudo bem. Ele perderia o medo de Marcus na hora. Pensei muito

nisso, porque percebi que teria mudado tudo o que aconteceu depois.

Em vez disso, porém, eu observei. E o que Sal fez foi se abaixar e fingir que amarrava

os sapatos. Era um pedido de misericórdia. Abaixar para amarrar o sapato era como dizer:

"Não posso brigar, não posso correr, curvo-me diante de você." Além disso, caso fosse

atingido mesmo assim, podia proteger partes importantes do corpo. Continuei andando

enquanto Sal se agachava na calçada e Marcus passava sem nem mesmo notá-lo. E então

Marcus passou direto por mim.

amanhã você vai entenderOnde histórias criam vida. Descubra agora