Coisas em um elevador
O dia de Ano-novo estava estranhamente quente e ensolarado. A bola de basquete de Sal
já batia forte no chão lá pelas 9h. Dei uma olhada na viela e o vi correndo para lá e para
cá vestindo apenas camiseta e calças de moletom. Ele usava o relógio que Louisa lhe dera
de Natal. Ela havia subido para nos mostrar de antemão. Era meio ultrapassado, com
algarismos romanos e pulseira de couro, e eu não tinha certeza se Sal iria gostar. Mas
parecia que tinha gostado.
* * *
Mamãe ainda estava dormindo. Escrevi um bilhete: Saí. Na volta, trago um bagel para você.
O homem da gargalhada não estava na esquina — talvez não trabalhasse nos feriados. O
mercado da Belle estava fechado. Tudo parecia um tanto em paz, e triste, e deserto.
Meus pés me levaram até a escola, que não estava funcionando, é claro. O portão do
pátio estava aberto, entrei e sentei no trepa-trepa por alguns minutos, percebendo como
era estranho estar ali sozinha. De certo modo estava tentando, deliberadamente, ficar com
medo, acho que queria me sentir mais alerta. Para ligar para Annemarie.
Dez dias de silêncio haviam se transformado em uma dúvida que gritava em minha
cabeça: "Annemarie ainda é sua amiga?" Havia um telefone público na esquina. Eu tinha
uma moedinha no bolso do casaco.
Enquanto discava, notei alguém inclinado sobre uma lata de lixo do outro lado da rua.
Quando se endireitou, vi que era o homem da gargalhada. Ele ficou ali, com as mãos na
cintura, olhando para a lata. Rapidamente, virei de costas, com medo de que ele me
reconhecesse e viesse até mim.
O fone encostado em minha orelha estava gelado. Só depois que o telefone começou a
chamar me ocorreu que, se minha mãe ainda estava dormindo, os pais de Annemarie
também poderiam estar.
— Alô! — atendeu o pai dela.
Parecia que ele já estava acordado havia horas, sentado ao lado do telefone, esperando,
esperando, esperando que tocasse.
— Oi... É a Miranda...
— Oi, Miranda! Feliz Ano-novo!
— Oi. Quer dizer... Feliz Ano-novo para o senhor também. Estou ligando para saber se
a Annemarie está em casa.
— Está, sim! Mas está tomando banho. Você por acaso está na rua, Miranda? Parece que
está ligando de um telefone público.
— Ah, é. Para falar a verdade, estou sim.
— Está aqui perto?
— Hum, sim. Estou perto da escola.
— Bem, então venha até aqui. Eu estava fazendo suco de laranja agorinha mesmo!
— Hum, tudo bem.
— Você vai fazer uma surpresa para Annemarie!
Subi a ladeira, onde a luz do sol parecia tocar todas as coisas como se fosse uma
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amanhã você vai entender
AcakPara Sean, Jack e Eli, campeões de risadas em horas impróprias, de amor intenso e de questões extremamente profundas. A experiência mais bela que podemos ter é o misterioso. — Albert Einstein Como vejo o mundo (1931)