Coisas que quicam
Depois que foi agredido, Sal começou a jogar basquete na viela atrás do nosso prédio. As
janelas da nossa sala dão para lá, e eu o ouvia batendo bola de 15h30 até 17h todos os dias.
Havia um aro enferrujado, sem rede, que fazia barulho de metal sacudindo sempre que ele
o acertava.
O apartamento de Sal e Louisa é praticamente igual ao nosso. Temos os mesmos
quartos retangulares, os mesmos lustres de cordinha no corredor, a mesma cozinha com
formato estranho e os mesmos fornos imprevisíveis. O nosso fica no andar de cima, e o
deles é bem embaixo.
Há diferenças. O piso da cozinha deles é de quadrados de linóleo amarelo e laranja e o
nosso é branco com pontos dourados, e a cama de Sal fica encostada em uma parede
diferente do quarto. Mas temos o mesmo piso no banheiro — azulejos hexagonais brancos.
Se olho bastante para eles, consigo ver diversos padrões nos hexágonos: linhas, flechas, até
flores. É como se eles se transformassem em várias figuras. O tipo de coisa que você nunca
deve tentar explicar a outra pessoa. Mas, quando éramos pequenos, falei com Sal sobre
isso, depois fomos ao banheiro dele para olhar juntos para o piso. Sal e Miranda, Miranda
e Sal.
* * *
Sal jogava cada vez mais basquete e falava cada vez menos comigo. Perguntei quatrocentas
vezes se ele estava bem, se estava zangado comigo, se havia algo errado, 399 vezes ele
respondeu "Sim", "Não" e "Nada". Então, na última vez que perguntei, ele me disse —
enquanto estávamos no lobby, e ele olhava para os pés — que não queria almoçar nem
voltar para casa comigo por um tempo.
— Mas ainda quer ser meu amigo ou nem isso? — perguntei.
Ele continuou olhando para os pés e disse que não, que achava que não queria, por um
tempo.
* * *
Tive sorte, acho, de aquela ser a mesma semana em que Julia decidiu, por algum motivo,
punir Annemarie.
As meninas da escola brigam há anos, mas só quando Sal me abandonou fui forçada a
notá-las. Já as vi trocarem de melhor amiga, começarem guerrinhas, chorarem, destrocarem
de melhor amiga, fazerem pactos, gritarem e agarrarem os braços umas das outras daquele
falso jeito empolgado etc. Sabia quais delas torturavam Alice Evans, que, mesmo já estando
no sexto ano, ainda esperava muito tempo para fazer xixi e nunca queria dizer em voz alta
que precisava ir ao banheiro. As meninas esperavam Alice ficar desesperada, agitando um
pé, depois o outro, e então começavam a fazer perguntas: "Alice", diziam, "você já fez a
lição de matemática? A página que diz 'multiplique para verificar suas respostas'? Como
você fez?"
E Alice pulava desesperadamente enquanto mostrava a elas.
Eu sabia que as meninas sempre andavam em duplas, e Julia e Annemarie andavam em
dupla havia um bom tempo. Eu odiava Julia. E nunca tinha parado para pensar muito
sobre Annemarie.
Minha primeira lembrança de Julia é do segundo ano, quando fizemos autorretratos na
aula de arte. Ela reclamou que não havia cartolina da cor "café com leite" para sua pele, ou
"chocolate com 60% de cacau" para seus olhos. Eu me lembro de tê-la encarado enquanto
essas palavras saíam de sua boca e pensar: sua pele é marrom-clara, seus olhos são
marrom-escuros. Por que não usa logo o marrom, sua idiota? Jay Stringer não reclamou do
papel, nem as outras dez crianças que usaram marrom. Eu não reclamei do estúpido rosaescuro
que me deram. Ela achava minha pele rosa-escura?
Mas logo descobri que Julia não era como nós. Ela tinha viajado o mundo todo com os
pais. Desaparecia da escola e voltava duas semanas depois com laços de cetim nas tranças,
um vestido novo de veludo com decote canoa ou três anéis dourados em um só dedo. Ela
aprendera sobre o chocolate com 60% de cacau na Suíça, onde seus pais lhe compraram
vários deles, além de um pequeno relógio de prata que ela estava sempre exibindo para as
pessoas.
* * *
Ainda não sei o que Annemarie fez de errado, mas durante a leitura silenciosa, naquela
terça, Julia lhe disse que, como punição, elas não almoçariam juntas pelo "restante da
semana". Julia era ótima em fazer anúncios em voz alta, para todo mundo ouvir. Então, na
quarta-feira, perguntei a Annemarie se ela queria sair para almoçar comigo, e ela disse sim.
* * *
No sexto ano as crianças com dinheiro, mesmo que pouco, saem para almoçar, a menos
que algo esteja acontecendo, como na primeira semana de aula, quando havia um homem
correndo completamente nu pela Broadway e nós tivemos que comer no refeitório da
escola enquanto a polícia tentava pegá-lo.
A maioria vai comer pizza, vai ao McDonald's ou, de vez em quando, vai à lanchonete
do Jimmy, que tem um nome de verdade, mas a chamamos assim porque a única pessoa
que já vimos trabalhando lá é um cara chamado Jimmy.
A pizza é o que mais vale a pena. Por 1,50 dólar é possível comprar duas fatias, uma
lata de refrigerante e um pirulito de cereja do baldinho de doces que fica ao lado do caixa.
No primeiro dia em que almoçamos juntas, Annemarie e eu demos a sorte de encontrar
dois bancos, um do lado do outro, no balcão, embaixo da bandeira da Itália.
Achei um pouco nojento comer pizza com a Annemarie porque ela arrancou o queijo
de sua fatia como uma casquinha de ferida e o comeu, deixando todo o resto no prato.
Mas ela riu das minhas piadas (a maioria roubada de Richard, que é ruim para contar
piadas, mas conhece um monte) e me convidou para ir à sua casa depois da escola, o que
compensou o restante. Seria uma tarde a menos ouvindo a bola de basquete de Sal. E o
homem da gargalhada provavelmente estaria dormindo embaixo da caixa de correio
quando eu voltasse.
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amanhã você vai entender
AcakPara Sean, Jack e Eli, campeões de risadas em horas impróprias, de amor intenso e de questões extremamente profundas. A experiência mais bela que podemos ter é o misterioso. — Albert Einstein Como vejo o mundo (1931)