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A capital sagrada de Shiro era muito mais barulhenta e movimentada do que Yumeko imaginava. Nem todas as filmagens de noticiário faziam jus à imensidão dos prédios que a cercavam, e que ainda a impressionavam mesmo após meses morando entre eles.

Depois da escola, Yumeko seguia direto para o distrito do clã Kairiku, onde estava hospedada, e tinha aulas a tarde inteira com as sacerdotisas do Santuário Branco. As duas miko principais, Takako e Sayuri, raramente tinham tempo de ensiná-la, mas havia professoras competentes de sobra.

Mesmo que apenas duas mulheres no clã pudessem carregar as pérolas celestiais concedidas pelo céu, as demais podiam continuar a trabalhar como sacerdotisas auxiliares. Estas podiam acessar magia sagrada quando "emprestada" pelas detentoras das pérolas, e tinham muito conhecimento sobre.

Hoje Yumeko iria praticar conjurar kami, algo em que ela vinha se aperfeiçoando rapidamente. Quase toda vez que fazia uso de algum tipo de magia sagrada, a menina via um brilho azulado rodear o ofuda ou objeto cerimonial que usasse, efeito do poder cedido a ela por Mikoto. O mesmo brilho envolveu a chama que dançou em sua mão durante o exercício.

Aquele brilho azul era a prova de que Mikoto cedera a ela domínio sobre a magia sagrada das miko, originada das pérolas celestiais. O coração de Yumeko sempre acelerava ao ver a aura azul, pois era um lembrete do quanto devia a Mikoto, e ao mesmo tempo prova de que ela ainda estava viva. Se não estivesse, Yumeko perderia qualquer dom de uma sacerdotisa do clã Kairiku.

— Parabéns, Yumeko. Dominou o fogo completamente – Shouko, sua professora do dia, assentiu com um sorriso sereno. O rosto da aluna se iluminou com o sucesso após dias de treinamento com fogo – Acho que não há mais nada para te ensinar hoje.

Com o final da lição, Yumeko foi para casa, ou melhor, a casa que o clã disponibilizara para ela e os demais hóspedes. A adolescente imaginava que morar ali se assemelhava a dividir a casa com uma fraternidade. Os únicos adultos ali eram as mães de Ume e Jin e o pai da própria Yumeko.

Izumi e Kouta, os dois mais velhos, com seus respectivos dezesseis e dezessete anos, convenceram os pais a deixá-los ficar ali, sob a supervisão do clã mais renomado de Yamato.

Os cinco jovens estavam ali por terem algo em comum; todos possuíam sangue de youkai correndo em suas veias, e este dava-lhes poderes sobrenaturais.

Jin e Ume, o casal de primos, eram descendentes de tanuki, o que lhes dava a capacidade de se transformar em qualquer outra criatura ou objeto que desejassem. Izumi, como descendente de nekomata, conjurava e controlava o fogo como uma extensão de seu corpo. Yumeko tinha sangue de kitsune, o que permitia que ela vagasse à vontade pelos sonhos de outras pessoas quando dormia. E Kouta era herdeiro de baku, e podia entrar, sair e levar pessoas e objetos com ele para o reino onírico.

Mas essa não era a única razão para o quinteto estar ali, longe de casa e em meio às únicas praticantes de magia conhecidas. Havia outro fator que os unia.

Três meses atrás todos eles, exceto Yumeko, foram para o reino onírico, onde foram treinados por um rapaz misterioso chamado Arashi, que alegava trabalhar para a kitsune rainha, um youkai benevolente que os ensinaria a controlar seus dons.

Já Yumeko descobriu por conta própria sua capacidade de passear pelos sonhos, e encontrou uma criatura de pesadelo que a prendeu ali, condenando seu corpo a um sono eterno enquanto sua mente vagava sem saída. Até encontrar a kitsune rainha, que prometeu ajudá-la a acordar.

Mas foi tudo uma mentira.

A rainha se revelou o espírito de uma nogitsune, uma raposa maligna cujo único objetivo era atrair Mikoto para o mundo onírico, com o intuito de tentar possuir seu corpo, ou então o faria com Yumeko. No fim, Mikoto se sacrificou para salvar a adolescente, e caiu num abismo para as profundezas do sono, levando o espírito de Akumi consigo.

Ela estava desaparecida desde então. Já fazia três meses.

Era por isso que Yumeko estava ali agora, aprendendo magia sagrada de dia e percorrendo o mundo onírico à procura de Mikoto durante a noite. Encontrá-la tornara-se seu maior objetivo, e tanto seu pai quanto outras pessoas diziam que beirava à obsessão.

Yumeko não tirava a razão de quem dizia isso, mas era um mal necessário. Mikoto jogara fora sua liberdade, seu próprio corpo, por ela. Ela devia isso a Mikoto. Devia muito.

— Boa tarde – ela cumprimentou ao encontrar Kouta na cozinha, onde ele frequentemente podia ser encontrado – O que vai ter para o jantar?

— Estou pensando em sopa – ele respondeu sem levantar a cabeça do que cortava na bancada ao lado da pia. Yumeko olhou por cima do ombro dele.

— Ah, mas só tem legume.

— Você precisa mesmo comer mais legumes. Muita carne pode dar pesadelos.

A menina revirou os olhos para a brincadeira e foi para seu quarto. Gostaria de praticar mais um pouco com o ofuda, mas seu pai a mataria se ela deixasse de fazer o dever de casa. Isso era uma desvantagem de estar na cidade grande; a escola era muito mais rigorosa com o dever de casa.

Depois do jantar, Yumeko e Kouta se retiraram para o quarto da menina, algo que se tornara parte da rotina noturna dos dois. Eles se sentaram no chão de frente um para o outro, Kouta flexionou os ombros para relaxar e puxou conversa:

— Você falou com a Takako hoje?

— Não. Nem com a Sayuri. Faz quase uma semana que elas não passam meia hora comigo – Yumeko suspirou.

— Elas andam bem ocupadas com Ume e Jin, e eu soube que pode ter mais legados a caminho.

A adolescente franziu as sobrancelhas.

— Tem aparecido mais deles ultimamente, não é?

— Sim, e as pessoas estão assustadas. Mas não devíamos nos concentrar no que fazer agora?

— Sim, tem razão.

Eles inspiraram fundo e fecharam os olhos. Ambos tiveram sessões de meditação com a alta-sacerdotisa Tamayori, e a usavam como forma de se induzirem ao sono e viajar para o reino onírico mais rapidamente.

Quando abriram os olhos, Kouta e Yumeko estavam diante da beira de um penhasco, acima de um oceano cinzento e agitado. Fora ali que pararam na noite anterior.

— Você não sente uma vontade de se jogar quando olha lá para baixo? – Yumeko perguntou. Kouta olhou para as ondas que batiam agressivamente contra a base do penhasco e engoliu em seco antes de responder:

— Não mesmo.

— Eu sim. Não pela emoção, é claro, para encontrar a Mikoto. Se ao menos eu pudesse...

— Mas nenhum de nós pode. Tem pessoas esperando por nós em casa, e não vamos mergulhar nesse oceano sem fundo se não tivermos garantia de que vamos voltar. O único jeito de conseguirmos isso é aprendendo o máximo que pudermos sobre este mundo.

Um pouco a contragosto, Yumeko acompanhou o amigo para uma pequena colina não muito longe dali, onde habitava um baku, responsável por monitorar aquela área. Akumi o ferira ao se estabelecer no reino onírico e ele foi deixado machucado, para ser encontrado por Yumeko e curado por Mikoto semanas depois.

Agora ele oferecia seus conhecimentos em retribuição, mas se entendia melhor com Kouta, sem dúvida pelo rapaz compartilhar o sangue com sua espécie. E a impaciência de Yumeko diante de suas longas palestras também não ajudava a estreitar os laços com o youkai.

Os dois adolescentes mal chegaram ao pé da colina e foram saudados por um bramido.

— Bem-vindos, jovens.

Yumeko agora conseguia entender quase perfeitamente a linguagem dos baku graças a algumas aulas com Kouta. Os dois sentaram-se em frente ao youkai, e começou a lição da noite.

O Conto da Donzela CelestialOnde histórias criam vida. Descubra agora