35

6 2 3
                                    

Mikoto abriu os olhos sobressaltada e sentou. Ela estivera dormindo? Não se lembrava de ter se deitado nem adormecido, então por que a sensação de acordar?

O que foi aquilo? Eu estava sonhando esse tempo todo?

A última coisa que se lembrava era de ter aberto as portas do reino celestial, e lá obteve o poder de remover Akumi do corpo de Arashi e enfim erradicá-la para o mundo dos mortos.

Mas e depois?

O que aconteceu?

Ela olhou as próprias mãos e as levou ao peito. A pérola azul ainda estava em seu pescoço.

Mikoto ficou de pé e deu uma olhada nos arredores. Não conseguia ver nada, nem mesmo parecia haver chão a seus pés, apenas uma superfície cinzenta opaca. Tudo era uma infinidade cinza, como que coberto por um denso nevoeiro até onde a vista alcançava, parecia mais um cenário de sonho ou tirado de um filme. Um mundo completamente vazio.

Que lugar era aquele?

A pérola azul permaneceu apagada e em silêncio quando Mikoto a segurou e pediu alguma explicação. Não haveria resposta? A raposa celestial a abandonara?

A jovem encolheu os ombros.

— Talvez a tenko estivesse errada, e houvesse mesmo um castigo afinal...

— Não seja tão precipitada em pensar isso. Já esqueceu o que ela te disse?

— Yumeko! – Mikoto olhou ao redor, procurando de onde a voz da menina viera, mas não viu ninguém nem nada além do vazio cinza – Você está...?

— Eu estou bem.

— E Takako, Sayuri e...

— Todos estão ótimos. Akumi se foi. Graças a você.

— Que alívio – a jovem suspirou – Mas que lugar é esse?

— É uma espécie de reino entre reinos, como um espaço onde todos os outros se encontram, uma zona de interseção, mas não há como ter certeza. Apenas que não estamos no reino celestial, mas também não é o reino onírico, nem o mundo humano, nem o mundo dos mortos.

Mikoto assentiu lentamente. Mesmo com uma explicação, aquele lugar parecia cada vez mais estranho.

— Mikoto – Yumeko a chamou novamente – Por seus esforços, Akumi se foi definitivamente, e o mundo humano está livre da ameaça que ela representava. Para isso você empunhou um poder incomensurável mais de uma vez, que foi usado somente por poucos humanos ao longo dos séculos. Um poder proibido.

Mikoto engoliu em seco, torcendo as mãos preocupada. Yumeko continuou:

— Porém, sua alma não foi maculada, seu coração não foi corrompido pela ganância que levou outros às trevas, mesmo quando foi agraciada com um poder equivalente ao dos seres celestiais. Você não quis mais para si mesma, simplesmente usou esse poder conforme a ordem natural, prestando seus serviços ao mundo.

"Por isso que os youkai celestiais, os dois dragões e a tenko, a trouxeram aqui. Não foi para puni-la, mas para dar-lhe uma escolha"

Agora a voz de Yumeko vinha de trás, e Mikoto tinha certeza que se olhasse por cima do ombro, a menina estaria ali, costas a costas com ela. Entretanto, o olhar da jovem manteve-se fixo nos próprios pés enquanto a mais nova prosseguia:

— Você pode ficar aqui e ter o seu merecido descanso dos heróis. Nada nem ninguém perturbará seu sono. Você estará em paz, como sempre desejou.

"Ou pode voltar para o mundo humano. Você o encontrará no mesmo estado de mudança em que o deixou. Enfrentará o período de transição que já começou, terá as dores e sofrimentos que ele traz, e irá experimentar as alegrias e o amor de viver também. Mas nesse caso, terá que deixar para trás aquele poder que o reino celestial lhe concedeu"

Ao final da frase, Mikoto sentiu um movimento atrás de si. Yumeko se virara e agora encarava suas costas, à espera da resposta.

— Qual é a sua decisão, Mikoto?

Ela pensou no que a tenko dissera em seu sonho, que suas ações do ano passado causaram uma alteração na ordem do mundo, e que as repercussões estavam somente começando.

O mundo para onde voltaria estaria mais complicado do que jamais fora em séculos, e como miko, ela teria que estar na linha de frente, acompanhando a mudança, ajudando quem precisasse, fossem sacerdotisas, legados ou humanos comuns, e enfrentar também o que quer que viesse depois. Um futuro que ninguém poderia prever.

Mikoto olhou para a pérola azul que agora jazia em suas mãos, que era sua e somente sua por direito e merecimento, e nunca mais duvidaria disso. Então se lembrou do poder imenso que percorrera dela para seu corpo e forçara Akumi para o além, e quando enviou Ame embora. Fora algo grandioso, o maior poder que ela sentira na vida.

Grandioso demais para a humilde sacerdotisa de um pequeno santuário.

Ela apertou a pérola contra o peito.

— Acho que você já sabe o que vou escolher.

Mikoto girou nos calcanhares e encontrou o rosto sorridente de Yumeko. Sentiu também pequenas ondas frias batendo em seus calcanhares, o vento salgado fustigando seu cabelo e o calor do sol no rosto. E todo o cinza substituído pelo colorido do amanhecer.

— Mikoto! Yumeko!

Takako, Sayuri e Haku estavam na areia da praia de Shiro. As duas miko mais jovens correram da água e foram ao encontro deles.

Haku tirou Mikoto do chão num abraço esmagador e a girou no ar, enquanto Takako e Sayuri verificavam, aliviadas, que Yumeko estava bem, depois foi a vez delas quase quebrarem as costelas de Mikoto.

— Como voltamos ao mundo humano? – Haku estava bastante confuso – Nós estávamos na frente daquele torii para o mundo celestial, Takako e Sayuri não paravam de rezar, e estávamos esperando uma notícia de vocês duas...

— Aí tudo ficou cinza de repente, e quando percebemos, aparecemos aqui – Sayuri completou – E vocês também!

— O mundo entre mundos – Mikoto murmurou. Takako a fitou com estranheza.

— O quê?

— Um presente dos deuses – Yumeko trocou um olhar divertido com Mikoto.

Dois gritos de surpresa chamaram a atenção dos cinco. Yukio e Shin vinham correndo para a praia, completamente estupefatos.

— Vocês estão de volta!

— Mas como?!

O príncipe ignorou as dúvidas e o absurdo da situação por um momento e abraçou Mikoto ternamente, seu coração batendo a mil contra o dela. Num sobressalto ele se afastou, o rosto corado, e perguntou:

— Como?

— É uma história complicada.

— Gente, e quanto a Yasha? – Haku indagou. Todos ficaram mudos; tinham se esquecido dela, e uma rápida olhada ao redor mostrou que a mulher não estava ali entre eles.

Yumeko respondeu:

— A escolha é dela. Pode ficar no reino onírico ou voltar – ela dirigiu-se a Mikoto – Ela ainda tem o ofuda que você deu, não é?

— Sim. E acho que ela vai querer acordar. Tenho esse pressentimento – a miko do céu deu um sorrisinho – Mas não se preocupem, também tenho a impressão que ela não será mais problema para nós.

— Mas como eu vou explicar isso à minha mãe?! – Yumeko exclamou apavorada, e os demais explodiram em risadas. Como explicar que ela se teletransportara de casa para Shiro novamente?

— Pensaremos numa boa explicação – Sayuri riu e passou o braço pelos ombros da adolescente – Aposto que sua mãe não vai querer ver a gente nem pintada depois disso. Mas deixemos o futuro para depois, vamos descansar primeiro.

Mikoto concordou, deixando Shin pegar sua mão, e sorriu para ele.

— Sim. O descanso dos heróis.

O Conto da Donzela CelestialOnde histórias criam vida. Descubra agora