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Mikoto encarou a si mesma intrigada. Parecia estar olhando num espelho, ela inclusive tinha o mesmo olhar cansado que há pouco se refletira naquele mar parado. Mas diferente do reflexo de um espelho, esta Mikoto não copiava os movimentos da original.

As duas apenas se encararam por um momento, então a outra Mikoto tirou um ofuda do bolso e brincou com ele entre os dedos.

— Sabe por que o kami da morte é proibido? – aquela era a voz dela? Não podia ser, era muito mais infantil e aguda do que ela ouvia ao falar – Porque é um poder que não deve ser empunhado por humanos. Apenas deuses podem usá-lo.

Sim, Mikoto se lembrava de ter lido algo assim no código do clã Kairiku que Takako lhe dera, mas por que mencionar isso agora?

— Quando humanos utilizam o poder de ceifar uma vida, isso deixa uma marca na alma, uma mácula que pode corrompê-la. Não é nada bonito, ainda mais para uma miko.

A outra Mikoto jogou o ofuda longe, ele caiu na água e o papel se dissolveu até restarem poucos pedaços flutuantes.

— Por que está me dizendo isso?

— Porque nós usamos esse poder proibido mais de uma vez no ano passado, e usaríamos de novo. A prova está aí – ela apontou para o bolso de Mikoto – Sabemos que é uma transgressão, mas mantemos esse kami conosco.

— É por precaução. Quero dizer, nunca se sabe – a jovem miko gaguejou, mas seu reflexo ainda não tinha terminado.

— Nós também não demos ouvidos à nossa pérola. Ela nos acordava dos sonhos proféticos e nos alertou para ficarmos longe do reino onírico, porque era perigoso lá.

A lembrança de um sonho que tivera no caminho para o castelo de Akumi voltou. A luz azul da pérola tomara uma forma indistinta e dissera "... perigo... fantasma... passado... deixe... este... mundo... ameaça..."

Mikoto hesitou, argumentando:

— Eu tinha que ajudar Yumeko e os outros legados...

— Foi uma ordem direta dos céus! E nós a desobedecemos! Já pensou que a pérola queria evitar justamente que isso acontecesse?! – ela abriu os braços – E estar aqui pode ser a nossa punição! Não conseguimos sequer salvar um daqueles pobres legados.

Ela indicou a água. Mikoto seguiu seu olhar e se sobressaltou ao reconhecer refletido ali o rosto de uma dos seis adolescentes. A menina de óculos e tranças, descendente de Ame-onna.

— Ayana. Ela...?

— Cruzou a fronteira para o além. Ela morreu enquanto estávamos no castelo.

Mikoto começou a tremer. Sem que percebesse, ela se agarrara à pedra em seu pescoço, e agora a olhava insegura. Ainda tentou argumentar:

— Eu ainda tenho que encontrar Akumi.

— É mesmo, mas não encontramos nada no caminho para cá, e parece que aqui é o fim da linha – o reflexo olhou para o mar e se sentou na areia, exatamente como Mikoto fizera minutos atrás. A miko também voltou a se sentar, a dois metros de sua cópia.

Era estranho que ela estivesse ali, mas também havia algo de reconfortante em sua presença. Talvez fosse porque tudo que ela dissera eram assuntos que a própria Mikoto vinha pensando há tempos, e ouvi-la exprimir essas ideias em voz alta fosse como uma confirmação.

O rosto de Ayana não saía da mente de Mikoto. Quando ela morreu, e como? Foi pelas mãos de Akumi? Mas a nogitsune estava em seu palácio o tempo inteiro, então talvez fosse obra de... Arashi?

Não, ele não é assassino, ela pensou, mas logo reconsiderou. O rapaz que se autonomeara Arashi não tinha nada de Ame, ela não saberia mais o que ele era ou não capaz de fazer. Talvez ele fosse mesmo capaz de matar até uma menina inocente.

Logo Mikoto pegou-se pensando de novo em Megumi-sama, em casa, na tranquilidade da ilha Iruka. E como tudo era tão mais simples antes de ela se envolver com toda a magia e os assuntos do clã Kairiku.

Depois de descobrir a verdade sobre o próprio nascimento, Mikoto achou que sua missão estivesse cumprida, e ficou mais do que feliz em voltar para casa.

Quando o grupo de legados liderados por Arashi apareceu na ilha, ela quis mesmo agir, impulsionada por um senso de responsabilidade de sacerdotisa. Isso se devia ao "código de honra" que Takako lhe enviara, cheio de regras sobre o que uma verdadeira miko detentora de uma pérola faz. Ela achou que estava pronta para isso.

Mas agora ela se perguntava se tomara a decisão certa, se seria a pessoa indicada para realizar tal missão. Afinal, ela seguira as regras, fez o que se esperaria de uma miko, mas não conseguiu resolver nada; não eliminou o youkai e não evitou a morte de uma inocente.

— Dá vontade de fugir, não é? Correr de volta para casa e esquecer todo o resto, como na nossa primeira jornada – a outra Mikoto comentou, como que lendo seus pensamentos. Mikoto se retesou por um momento, mas logo relaxou, afinal era apenas ela mesma ali. Ninguém mais ouviria.

— Sim. Talvez eu devesse ter ouvido minha pérola, ter ficado longe desse caso e deixado para Takako e Sayuri resolverem, como elas disseram que fariam. Talvez a história tivesse terminado de outra forma.

Era libertador falar tão francamente, Mikoto tinha que admitir.

Lentamente, ela levou a mão à pérola azul e a tirou do pescoço para rolá-la pela palma de sua mão. A voz que vinha da pérola não falou mais com ela desde que chegara. Será que fora pelo motivo que seu reflexo supôs?

Mikoto abraçou os joelhos e enterrou o rosto neles com um profundo suspiro.

— Em que está pensando? – a outra Mikoto indagou.

— Que eu falhei. Como miko e como eu mesma. Deixei meus amigos e família para trás pelo dever, mas só consegui complicar ainda mais a situação. Não consegui salvar aqueles legados perdidos, e decepcionei todo mundo. Não estou qualificada para ser uma miko.

A pérola escorregou de seus dedos e rolou pela areia até a água, onde ficou submersa pela metade.

O silêncio que se instaurou era esmagador.

De repente a temperatura começou a cair, arrepiando os pelos dos braços de Mikoto. Ela ergueu a cabeça para ver que seu reflexo não estava mais ali, e a neblina tornara-se mais escura e densa, concentrando-se à sua volta.

Estranhamente, a jovem não se assustou com aquilo, era quase como se uma parte dela esperasse que isso acontecesse. Mas como poderia?

Então ouviu passos suaves na areia às suas costas, mas que no silêncio soaram muito ruidosos. Mikoto girou o tronco, só tendo um vislumbre de brilho prateado antes de garras se cravarem em seu peito. Uma sensação de queimação gelada se espalhou a partir dali, como se veneno tivesse sido injetado.

Mikoto convulsionou e lutou para se levantar, mas parecia que um choque passava por todos os seus nervos; espasmos percorriam cada músculo de seu corpo, tornando se mexer uma árdua tarefa.

Com todo o esforço, ela conseguiu mover um corpo que se recusava a obedecê-la e pôs-se de pé tropegamente, então procurou onde a pérola caíra. Não conseguia ver a água, a neblina quase negra a envolvia como se atraída pela presença sombria que só crescia cada vez mais em seu interior.

— Mikoto! – ela olhou por cima do ombro para ver que era Haku. Ele vinha correndo em sua direção, chamando-a para voltar para casa. Mas ela não podia, não mais.

Porque ela não era mais ela mesma.

— Esqueça-me. Eu não quero te machucar – ela conseguiu dizer com os últimos gramas de força, antes da escuridão encobrir a visão dele, e seus sentidos.

O Conto da Donzela CelestialOnde histórias criam vida. Descubra agora