Já fazia algum tempo que Mikoto sentia o chão inclinado sob seus pés, como se descesse uma extensa, porém sutil ladeira. O chão também mudara em algum momento do percurso; estava menos arenoso, a trituração do solo mole sob seus pés fora substituída pelos baques secos e ritmados de seus passos. Parecia mais uma superfície feita de pedra agora.

Um pensamento lhe ocorreu; aquela imensidão era tão vazia, como Akumi desaparecera tão facilmente? Ela devia ser visível por alguma distância antes de ser engolida pelo escuro.

Talvez fosse por ela ser uma yuurei. Fantasmas são bons em sumir, ainda mais no escuro.

Nesse momento a pérola piscou, e tomada por uma sensação de ameaça, Mikoto tiro um ofuda do bolso e se posicionou defensivamente.

Então ouviu passos, mas diferente dos de Megumi-sama, estes eram mais altos e não transmitiam nada além de uma sensação de perigo. E logo ficou claro o porquê.

— Ame – ela falou secamente – Ou melhor, Arashi, não é?

Ele não estava do jeito como ela se lembrava. Devia ter passado por umas labutas desde a última vez que o vira, a julgar por uma marca de queimadura em sua placa de peito e o jeito estranho que andava, como se estivesse sentindo dor e tentasse poupar uma das pernas. Todo o braço e ombro direitos dele estavam envolvidos por uma atadura improvisada, feita da própria roupa.

Marcas de queimadura... teriam sido feitas por um kami de Takako e Sayuri? Ou Izumi, a herdeira de nekomata, o teria atacado por algum motivo? Ela era protetora com os outros, se tivesse descoberto a verdade sobre para quem ele trabalhava, talvez o tivesse alvejado para protegê-los.

A cabeça de Arashi também estava armadurada. Ele trocara o chapéu pontudo de palha por um elmo samurai moldado na forma do um oni, todo vermelho com chifres e caninos enormes. A expressão do rapaz estava oculta, encoberta pelo rosto do ogro, congelado num semblante feroz.

— Mikoto. Você... ainda é você – ele inclinou a cabeça para o lado – Eu achei que...

— Akumi estivesse me pilotando? Você sabia que era o que ela queria o tempo todo, não sabia? – o silêncio e um leve recuo dele confirmavam. Isso só tornava sua traição ainda mais dolorosa.

Assim como Mikoto, Ame era um homúnculo, um humano criado artificialmente pela tecnologia única dos youkai. Sua função era auxiliar o gêmeo, Haku, remotamente, mas no fim também escolheu ficar contra Akumi. Por isso fora uma surpresa tão grande quando ele reapareceu após meses sem dar notícia, mas do lado de Akumi agora.

Diante da acusação, ele deu um passo para trás, antes de erguer a cabeça, sua expressão corporal dizendo claramente que estava irritado.

— Você se acha muito superior por ter se virado sozinha, mas olhe onde nós dois estamos. Você não está melhor do que eu; pelo contrário. Está para ficar muito pior.

— O que quer dizer? – Mikoto retesou os músculos e recuou cautelosamente, um ofuda em punho e atenta a qualquer movimento do rapaz.

— Nós dois estamos aqui embaixo com Akumi. Sim, ela está por aí, mais perto do que você imagina, e somente um de nós dois está em bons termos com ela. Eu tomaria cuidado se fosse você, ou logo ela voltará a puxar suas cordinhas.

— Ela já tentou antes e falhou.

— Você teve sorte antes, e já não tem Yasha nem as outras miko para te ajudar aqui. Você está completamente sozinha – Arashi recuou e desapareceu na escuridão.

Mikoto só abaixou o ofuda quando os passos de Arashi desapareceram à distância, e só aí notou que o talismã de papel estava em branco.

Ele devia estar blefando, Akumi não poderia tentar possuir Mikoto, a pérola celestial não permitiria. Ela já fizera isso. Mikoto era a prova, ela estava aqui sem sinal do fantasma, não era?

O Conto da Donzela CelestialOnde histórias criam vida. Descubra agora