Enquanto o quarteto avançava pela cidade colcha de retalhos, o céu estrelado gradualmente foi ocupado por nuvens até estar completamente encoberto. O silêncio também não ajudava a deixar o clima mais leve, mas ninguém sabia o que falar depois da cena de Takako e Haku.
Sayuri pensava a mil por hora, tentando encontrar qualquer assunto que pudesse aliviar a tensão, mas não conseguiu pensar em nada. Era frustrante.
— Ei, olhem ali! É o Santuário Branco! – ela apontou para uma montanha com uma escadaria muito familiar.
— É mesmo – Takako sorriu – Está igualzinho ao verdadeiro. Ei, mas o que é isso?!
O chão diante da montanha começou a tremer e rachar.
— O que está acontecendo?! – Yumeko guinchou, tentando se equilibrar em meio ao terremoto, e gritou de medo quando uma fenda enorme se abriu e de lá saiu um esqueleto gigante.
Haku avançou e acertou um murro entre os olhos vazios do gashadokuro. O youkai recuou com o impacto, e Sayuri gritou, apontando um ofuda:
— Gravidade!
O esqueleto desabou como se fosse esmagado por uma bigorna invisível, e ficou imobilizado.
— Permita-me – Takako deu um passo à frente e pôs um ofuda na testa do youkai – Desconstrução.
Quando o monstro se desfez em uma pilha de centenas de ossos humanos, Yumeko não se conteve.
— Isso foi tão incrível!
— Não foi nosso primeiro gashadokuro – Takako achou graça da reação da adolescente. Sayuri também ria.
— Enfrentar youkai é como andar de bicicleta.
— Vocês já enfrentaram um desses no mundo real? – Yumeko estava boquiaberta. Sayuri riu mais alto.
— Sim, é uma história emocionante.
— Mas terá que ficar para depois – a miko mais velha interrompeu – Não sabemos se o gashadokuro pode se reconstruir aqui, e não temos tempo nem energia sobrando para fazer o encantamento para ele não voltar. Devemos sair daqui. Agora.
Eles seguiram calados novamente. A cidade de lembranças começava a espaçar seus prédios; logo o quarteto estaria fora dali.
— Ouviram isso? – foi Takako quem quebrou o silêncio. Haku apurou os ouvidos, mas não escutou nada.
— O quê?
— Parece a voz da...
Takako se voltou para o lado e começou a andar sem terminar a frase.
— Ei, espere, Takako-san, não se afaste! – Yumeko exclamou – Temos que ficar perto uns dos outros! Não podemos nos perder!
— Takako, volte! – Sayuri gritou, mas a prima sequer reduziu a velocidade – Vamos todos atrás dela.
— Fiquem juntos! – alertou Yumeko, e os três correram atrás de Takako.
Quando a alcançaram, a vários metros de distância, a sacerdotisa da terra tremia, e parecia muito assustada com algo que os outros não viam.
— Takako, o que foi? – Sayuri estendeu a mão, mas antes que encostasse na prima, Takako desabou de joelhos, chorando.
— Não... perdoe-me, Tamayori-sama – ela soluçava.
—Takako, o que... – Haku se interrompeu, surpreendido por uma voz que chamou seu nome ao longe. Uma voz que só podia pertencer a... – Mikoto?!
— Ei, Haku! Aonde você vai? – Yumeko gritou ao ver o rapaz correr para longe – Eu falei para a gente não se separar! Que droga. Sayuri, ajude aqui...
Mas Sayuri não estava ouvindo, seus olhos se fixaram num ponto à distância e ela balançava a cabeça com força, falando num sussurro rouco:
— Não, não.
Yumeko alternou o olhar entre as duas miko e o rapaz, sem entender o que era aquilo. Então ouviu alguém chamar:
— Yumeko – ela girou nos calcanhares para ver Mikoto sorrir para ela – Você veio me buscar!
— Mikoto! – Yumeko fez menção de correr para ela, maravilhada, mas parou a meio passo, porque não fazia sentido que ela estivesse ali – Não, isso não está certo.
Seus "sentidos de raposa" teriam detectado a presença de Mikoto se ela estivesse lá, e a trilha que a adolescente seguia dizia que Mikoto já partira daquele lugar. Aquela à sua frente não podia ser ela.
Pelos céus, é isso!
Yumeko voltou-se para os outros três. Takako ainda chorava encolhida no chão, Haku grunhia com as mãos na cabeça, e Sayuri ainda estava parada no mesmo lugar, tremendo da cabeça aos pés. Yumeko precisava agir rápido.
Com um estalar de dedos, três colunas de fogo azul-claro se acenderam. Takako, Sayuri e Haku se sobressaltaram quando as chamas assumiram formas humanas fantasmagóricas distorcidas que soltaram guinchos completamente inumanos, antes de se apagarem como velas.
O silêncio que se seguiu foi quase esmagador.
— O que... – Takako foi a primeira a se pronunciar, ficando de pé cambaleante – O que foi aquilo?
Todos os olhares se voltaram para Yumeko, estupefatos. Com um suspiro, a herdeira explicou:
— O que vocês viram foram projeções criadas por vocês mesmos. Nosso baku-sensei disse que ir mais fundo no oceano era como ir mais fundo na mente.
— Ah, sim. Kouta tinha falado disso também – Haku murmurou cabisbaixo.
— Então o que eu vi era só o meu medo personificado? – Sayuri balbuciou, torcendo o cabo da naginata de Mikoto entre as mãos.
— Simplificando, sim. Eu consegui conjurar algum fogo-fátuo de raposa e destruir esses pesadelos – Yumeko olhou por cima do ombro, aliviada por sua projeção ter sumido também.
Takako suspirou pesadamente, massageando a têmpora.
— Que bom que Yumeko está conosco. Nossa jornada poderia ter acabado aqui.
O tom sombrio em sua voz pesou sobre os quatro mais do que o silêncio de antes. Sayuri tentou falar descontraidamente, mesmo que sua voz ainda estivesse um pouco trêmula.
— Ei, foi um desvio não programado, já passou. Imprevistos acontecem. Podemos seguir em frente.
— Então vamos. Yumeko – Takako gesticulou para a menina, que tomou a dianteira, e logo os quatro retomaram a caminhada.
— Obrigado, Yumeko – Haku murmurou atrás dela. A adolescente sorriu.
— É para isso que estou aqui. Kouta teria feito o mesmo no meu lugar.
Ele teria feito de outra forma, talvez não tão pirocinética, mas igualmente eficiente. Kouta também teria conseguido ver os pesadelos que eles viram sem fazer esforço.
E pensar que Mikoto estivera ali sozinha. Como ela lidou com as projeções de seu inconsciente? Fazer isso sozinha era muito mais difícil do que se estivesse em grupo, pois ter mais pessoas por perto evitava que os pensamentos vagassem para lugares perigosos.
Ela devia ser mais forte do que Yumeko imaginara para seguir viagem solitária naquele lugar.
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O Conto da Donzela Celestial
FantasyTerceiro volume da trilogia O Conto da Donzela Três meses após os eventos de O Conto da Donzela do Sonho, Yumeko está morando com o clã Kairiku, aprendendo a ser uma miko e procurando uma forma de encontrar Mikoto e trazê-la de volta. Mas esse não é...