Uma carta oblíqua

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Quando saí do banho, já era manhã.

— Onde você estava? — Stef perguntou, ainda em sua cama.

— É... é uma longa história... e fósforos... e fantasmas... e herança... — tentei pronunciar, entre bocejos.

Acho que ela preferiu me perguntar depois, ou simplesmente perdeu a vontade de ouvir após eu pronunciar "fantasmas".

Foi horrível não ter tempo de dormir, com o pouquíssimo sono que venho tendo, isso se torna essencial. Apenas vesti o uniforme como um zumbi, e me dirigi ao restaurante. Puxa vida, faz apenas dias que Lúcia se foi, mas ela me faz tanta falta, principalmente em momentos como esse...

Tomei muito, mas muito mesmo, café. Preciso me manter acordada, acho que talvez isso irá funcionar. Hoje nem ao menos comi pães de queijo, eles não tem graça quando estou tão triste, ou quando Lúcia não está por perto, logo foram substituídos por biscoitos de água e sal, sem graça, para combinar comigo.

Bem, eu tentei, realmente tentei, me distrair, afinal, era melhor isso do que continuar com meu pessimismo. Sabia que só iria ficar ainda mais para baixo, e sinceramente, não quero isso, não hoje, mas é humanamente impossível.

Em todos os cantos de minha cabeça, só estava Lúcia. Uma versão completamente distorcida dela, para ser mais exata, como se ela fosse um demônio, que me fez apaixonar por ela, com o único propósito de me deixar. Eu estava com tanta raiva dela, com tanto ódio, que isso me consumia. Eu sentia puro luto, havia lembranças em cada canto do castelo, e isso me fazia sofrer demais. Parecia que ela havia se tornado uma pessoa completamente diferente.
A Lúcia que eu amava, não me faria sofrer desse jeito.

Nem tive tempo para digerir isso, pois meu cérebro parecia não funcionar. Quando me dei conta, já estava me arrastando pelos corredores, carregando meus livros, em direção a minha sala.

A grande quantidade de cafeína que ingeri deveria ter me ajudado a conter o sono, mas parecia que não havia adiantado nada. Entre um cochilo e outro, eu era atingida por uma bolinha de papel, lançada por Stef, eu suponho, para tentar me manter acordada, antes que o professor percebesse e eu acabasse de castigo, ou pior...

Certamente não seria pior que em minha antiga escola. Aqui, no máximo, os alunos que aprontam uma ou são displicentes, são suspensos ou castigados. Onde eu estudava antes, levávamos palmatórias. Claro que os pais que pagam tão caro para seus filhos estudarem, não admitiriam uma coisa dessas.

Meus olhos já não conseguiam mais se manter abertos, todavia, por sorte, a próxima aula era de história. Apesar de ser tão rígido quanto os outros professores, Heitor entenderia a minha situação, pelo menos, eu acho.

Minhas pálpebras pesaram novamente, e logo caí num sono profundo...

Mas logo fui acordada com um cutucão:

— Não dormiu hoje não, Ágatha? — o professor dizia, e a turma inteira abafava risadas.

— Não... mas não foi culpa minha... professor! Foram os fósforos e... — fui interrompida pelas risadas, que agora eram ouvidas em claro e bom som.

Merda, eu soava como um bêbado.

— Ora, vamos, acorde! Sua amada mandou uma carta para você! — estremeci ao ouvir o professor dizendo aquilo em alto e bom som. Quanta inconsequência...

Ele largou uma carta em minha carteira, e eu logo abri.

Ágatha
Me casei hoje pela manhã. Então, por favor, não me procure mais!
Apreciei muito o que tínhamos, mas algumas coisas precisam acabar, pelo nosso próprio bem.
Não me escreva mais, muito menos venha me visitar ou algo do tipo, está bem?
Você foi a melhor amiga que já tive.
Obrigada por tudo
Lúcia

Fiquei tão abalada ao ler isso, que senti meu sangue ferver, e um ódio me consumir dos pés à cabeça. Queria xingá-la, pondo minha raiva para fora, gritar aos quatro ventos o quanto a odiava por isso.

As vozes de minha cabeça não paravam de discutir, uma por cima da outra, eu não conseguia nem diferenciar o que cada uma estava dizendo.

Eu estava em guerra.

Uma guerra silenciosa e interna.

Mas que me machucava, e muito.

— Deixa eu ler! — uma garota mandava, com a voz abafada, e tentava agarrar a carta de minha mão.

— Não! Me dá! — Outra brigava, como se fosse uma criança de cinco anos querendo doce.

— Deixem de briga! Parem com isso! — Heitor interrompeu. — Tenho certeza que Ágatha poderá ler sua carta em alto e bom som, para todos nós.

Nunca estive envergonhada em toda minha vida, por que Heitor fez aquilo? Por que todos estavam tão interessados em minha vida pessoal? Eu queria desaparecer, na verdade, nunca ter nascido, e agora explodir de raiva no meio de todos.

Logo, eu acordei.

— Ágatha, entendo que esteja com sono, mas tente prestar atenção, é o conteúdo das provas finais! — Stef me contava.

Mas pouco me importavam as provas finais, pois esse pesadelo me fez ver uma possibilidade que já deveria ter cogitado antes:

— Preciso receber a correspondência! — eu disse, guiada por um instinto, me levantando e saindo da sala, ao som de várias alunas se perguntando: "O que deu nela?"

Eu me sentia humilhada, correndo até a portaria com os olhos cheios de esperança. Eu estava mesmo ridícula, esperando por migalhas, por um pouco de felicidade no meio de tanta melancolia. E eu sabia que essa felicidade acabaria, mas eu devia aproveitar, pois era a última delas.

Alguns minutos depois, eu já estava de volta à sala, e o sino do intervalo já havia tocado. Enquanto os alunos saíam, eu abria o lindo envelope que fora mandado para mim.
Com os olhos marejados, meus olhos corriam as linhas da carta.

Minha querida Ágatha
Não sei se receberá isso a tempo, mas de qualquer forma, estarei lhe enviando.
Primeiramente, quero me desculpar por ter quebrado nosso acordo. Pensei que minha saída repentina seria melhor, mas parece que o que aconteceu foi o oposto disso. Por favor, me perdoe!
Bem, sabe que é minha melhor amiga, não sabe? Por isso, te imploro: por favor, compareça ao meu casamento, eu preciso te ver, nem que seja por uma última vez, eu preciso!
Espero que não seja tarde demais...
Tudo de bom,
Lúcia.

Enxuguei minhas lágrimas com a manga de minha camisa, e enfim percebi que Heitor me olhava de jeito preocupado, no meio da sala já vazia.

Comecei a soluçar, e logo fui envolvida em um abraço.

Então eu apenas chorei, agarrada no paletó de Heitor. Acho que nunca derramei tantas lágrimas na vida.

Me lembro que quando era pequena, eu sentia um alívio após chorar. Meus pulmões respiravam profundamente, e eu me sentia melhor. Já faz tanto tempo que isso não acontece... agora parece que quanto mais eu choro, mais me afundo em minha própria tristeza.

Só quero paz.

Essas vozes dentro de mim... elas não me deixam ter isso.

Apertei o papel com força, desejando silenciosamente nunca o ter lido. Como ela tem a coragem de me chamar de "amiga", depois de tudo que vivemos?

Heitor tateou o envelope jogado em uma mesa, pegando algo que parecia ser um convite, e, dentro deste, três flores secas: um crisântemo, um lírio e uma margarida.

— Eu não quero ir lá. — resmunguei.

Após alguns segundos encarando aquelas flores com uma expressão confusa, ele arregalou os olhos, surpreso com algo.

— Bem... você sabe o que isso significa?

— Isso o quê? — perguntei confusa, sem vontade de pensar.

— As flores, Ágatha! Digo... na Era Vitoriana as pessoas costumavam usar essa linguagem, se expressando por flores. Nesse caso temos o crisântemo, que usualmente significa "te amo", o lírio do campo, conhecido por "te amarei cada vez mais", e... a margarida, ela significa "estarei te esperando".

Certo, agora eu realmente não quero ir lá, eu preciso ir lá.

— Heitor, você pode me dar uma carona?

A Maldição de Ágatha | ⚢Onde histórias criam vida. Descubra agora