Já era

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A última coisa que me lembro foi que eu corri. Corri muito, demais. Corri tão rápido que tudo em torno de mim se tornou um grande borrão. Os dedos de Lúcia estavam entrelaçados aos meus, enquanto prosseguíamos o mais rápido possível em direção ao carro de Heitor.

O pai dela morria de raiva de mim. Arremessou seu sapato em nós, enquanto dobrávamos à esquerda. Parecia que ele tinha desistido.
A porta do carro se fechou com um baque depois de entrarmos depressa no veículo. Heitor se encontrava em estado de choque enquanto gritávamos para ele dirigir.

Depois de voltarmos para a escola, os dias passaram depressa. Esperávamos uma carta, alguma resposta por parte dos pais de Lúcia, mas nada. Ela simplesmente foi deixada à deriva do mundo.

As provas finais estavam chegando, e eu estava cada vez mais desesperada. Enquanto estava cada vez mais preocupada com Lúcia, o medo de eu não conseguir fazer as provas por conta das visões me angustiava.

Um dia, finalmente, ela foi chamada na diretoria. Horas depois, ela voltou aos meus braços chorando.

Seus pais não haviam terminado de pagar as prestações da anuidade. Não atendiam ligações nem respondiam às cartas. Era como se Lúcia nunca tivesse existido pra eles. E agora, estava sendo expulsa da escola. O que mais me corroía e me perturbava, era o fato de isso ser tudo culpa minha, exclusivamente minha.
Eu acabei com a vida da pessoa que eu mais amo. De novo por causa de uma visão ridícula e falsa que eu cegamente acreditei. Não era possível que eu tenha sido tão ingênua e impulsiva a ponto de não perceber e nem ao menos lembrar que elas apenas existem em minha cabeça! Meu ego nem ao menos me lembrou que eu não sou nenhuma vidente nem nada parecido.

O ponto é que estava tudo bem enquanto os pesadelos apenas afetavam a mim. Mas agora, fui capaz de arruinar a vida de outra pessoa por meio delas. Talvez eu não seja a protagonista da minha vida, e sim a vilã de outras mil.
Lúcia continuava a me dizer que foi ela quem decidiu fugir, que eu não tinha culpa alguma, mas isso não era capaz de me convencer. Afinal, se não fosse por mim, ela teria sido abandonada às margens da sociedade.

Mais tarde ela estava arrumando suas malas e eu não pude acreditar que vi isso. Ela não tinha para onde ir, nem morar, nem estudar. Isso foi o estopim. Não tinha outro jeito.

— Você vai deixar a Lúcia estudar aqui. — falei, encarando a alma de Suzana, em meio à sua enorme sala.

— Não sou nenhuma responsável dela. Não posso fazer isso. — respondeu a diretora.

— E pode a mandar para a rua? Não vê o que está fazendo?

— Ela não vai para a rua. Ela vai para casa. Por que não iria?

— Pior ainda.

— O que essa menina aprontou agora? Sabia que ela era dessas... — Ela leva as mãos à testa e se apoia na mesa, enquanto balançava a cabeça em desagrado.

— Você não sabe o que ela passou. Nem um porcento. E caso você tenha se esquecido, essa escola é minha.

Como ela já não tinha o que contestar, Lúcia continuou frequentando as aulas e morando no internato normalmente. Acho que isso foi o que mais me fez perceber o poder que eu tinha em minhas mãos. E eu tive uma ideia brilhante depois disso.

— Isso aqui vai virar uma instituição justa. — foi o que eu falei para a diretora Suzana.
Depois de um ano nesse lugar, eu percebi como tudo no mundo é injusto. Desde que vi o desperdício no restaurante, às atitudes elitistas e mesquinhas por maioria das estudantes e o quanto o meu amor era perseguido, era impossível não fazer alguma coisa. Lúcia era a única aluna negra desse lugar e ainda tinha que passar todos os dias nesse inferno ouvindo piadinhas de mal gosto entupidas de preconceito, sem contar tudo o que era falado nas suas costas inclusive por professores, e quando ela perdeu seu lar...

— Você quer cotas? É isso?

— Não, você me entendeu errado. A partir de hoje, essa instituição vai fornecer abrigo e educação para descendentes de escravos, jovens em situações de rua e também homossexuais segregados de suas famílias.

A cara de Suzana era de nojo. Ela esboçava um sorriso achando que eu devia estar brincando, mas logo que percebeu que eu estava falando sério, sua expressão ficou cada vez mais horrorizada, como se eu estivesse falando das maiores atrocidades já cometidas na humanidade.

— Você quer esse povo estudando junto das alunas daqui? — ela ria. — Mesmo se isso fosse possível, você realmente acha que os pais iriam gostar dessa ideia? De ter suas filhas criadas com o bom e o melhor estudando com marginais?

— Só são marginais por que eles foram jogados às margens da sociedade. E você não está me entendendo... esse lugar foi construído por escravos. Esse lugar pertence ao povo.

— Não... — sua expressão misturava riso e terror — Você não vai fazer isso. Esqueça... — ela debochou.

Mas é claro que eu ia fazer isso.
Foi difícil, na verdade quase impossível, convencer a diretora disso, foi preciso muita insistência e chantagem, apesar de eu não me orgulhar disso.

Com o passar do tempo, as mudanças foram ocorrendo gradualmente. Não houve a abertura de turmas novas no ano seguinte. As mais velhas já estavam se formando, inclusive eu. Agora já plenamente acostumada com as visões, a vida estava melhorando. Já não sentia mais vontade de morrer nem mesmo de desaparecer, afinal, se o fizesse, tudo estaria perdido.

Os Beatus tinham posse de mercados, hospitais e centenas de fábricas. Eu só estava pedindo o colégio, só isso. De acordo com meu planejamento, todo o resto iria bancar o que fosse necessário, e eu sei que eu não iria desfazer a desigualdade do mundo, mas pelo menos ia tentar melhorar, nem que seja um por cento disso.

Logo, a instituição estava vazia, e assim que fiz dezoito anos, a ansiedade percorria cada milímetro de meu corpo enquanto eu caminhava no último dia de aula para a sala dela. Após algumas horas chatas de conferência com advogados, finalmente a tinta de minha caneta correu pelo documento mais importante da minha vida, deixando lá, de uma vez por todas e para sempre, minha assinatura que eu treinei milhares, senão milhões, de vezes para sair bonita daquele jeito.

De uma vez por todas, me despedi do Lorde Beatus. Como irei sentir falta de todos os momentos que vivi aqui... eu andava lentamente, muito lentamente mesmo, pelos corredores. Meus dedos percorriam levemente todas as decorações em gesso e madeira das paredes, cada relevo, cada desenho tão bem trabalhado. O ar estava pesado nesse dia, e meus sapatos faziam barulho pela madeira encerada do chão. Agora eu só sentia vontade de voltar para o primeiro dia letivo.

A todo momento, não pude evitar pensar como seria se eu simplesmente nunca tivesse aberto aquele embrulho. Como seria se eu tivesse controlado minha curiosidade, e o preço alto que paguei pelo contrário disso. Por outro lado, eu não saberia de toda a verdade, nem teria como fazer nada a respeito. Resumidamente, minha vida até poderia ser melhor se nunca tivesse sido curiosa, mas aí, não seria eu.

Assim que passei pela velha tapeçaria que guardava dentro de si a sala abandonada, adentrei animadamente para contar as boas notícias.

— Cândida! Cândida! Você não vai acreditar! Foi aprovado, finalmente!

Mas não houve resposta alguma.

— Cândida? — eu repeti — Tudo vai dar certo, a justiça finalmente será feita!

Novamente, nada.

Não era mais um de seus jogos. Nem nada do tipo.

Quando retornava ao meu quarto pela última vez, me debrucei na janela do corredor, aquela pela qual já pensei tantas vezes em pular. A vista estava muito bonita, como sempre. Alguns raios solares conseguiam perfurar as nuvens do céu nublado.

Uma linda borboleta azul, sobrevoou os céus e pousou em minha mão. Nesse momento, com uma lágrima escorrendo de meus olhos azuis e castanhos, me dei conta de que Cândida se foi para sempre, já não estava mais presa por correntes. Ela estava livre.

Nunca mais tive nenhuma visão, alucinação ou pesadelo depois disso. Por fim, tudo ficou bem, na verdade, melhor do que nunca.

A Maldição de Ágatha | ⚢Onde histórias criam vida. Descubra agora