A Presa

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Quinze dias.

Estou contando os dias e anotando cada pensamento no meu "diário" que fiz com a caderneta preta que me trouxe. É um dos poucos recursos para manter a sanidade que tenho ao alcance das mãos aqui embaixo.

Nestes dias, meu humor oscilou bastante. Às vezes me vejo numa crise depressiva, em outras tenho acessos de fúria. Não quis comentar com Abby porque acho que ela já tem muitas informações a meu respeito e não quero lhe dar ainda mais munição contra mim, mas também sou borderline - o que explica a raiva que explode constantemente de mim sem uma justificativa a altura.

É, eu sei. Não dei muita sorte na vida. Órfã, cresci no sistema, cheia de problemas mentais e ainda me fodi na vida adulta, onde fui abandonada pelas poucas pessoas que consegui confiar e a figura materna que adquiri foi arrancada de mim por um acidente estúpido. Pobre garotinha traumatizada que não sabe ser uma boa adulta e que aparentemente está parada no mesmo lugar enquanto todos seguem com suas vidas perfeitas.

Agora estou parada literalmente, pelo menos. E não por escolha própria, diga-se de passagem.

Fui obrigada a ouvir Abby falar incansavelmente de Zygmunt Bauman. Ela usou o maior filósofo que tivemos neste século horroroso até agora para embasar sua visão distorcida do mundo. A maluca realmente acredita que a crítica dele às conexões de hoje, falando sobre a liquidez nos relacionamentos, em como todo mundo descarta facilmente amigos, namoros etc é a força motriz da própria teoria do seu experimento. Abby acha que criticar o fato das pessoas, tão vidradas na tecnologia, tão dispersas do contato humano, tão desesperadas e carentes e, ao mesmo tempo, tão indispostas a se entregarem as dificuldades de uma relação, é o mesmo que escolher alguém aleatoriamente na rua, perseguir por meses e depois trancar em seu porão igual Abby fez comigo, obrigando a pessoa a conviver com ela até amá-la.

Já tentei refutar sua ideia maluca, usando exatamente as palavras acima, mas além de não se ofender realmente comigo - o que eu acho particularmente estranho, pois sempre, em algum momento, as pessoas se estressam comigo - mas ela bateu o pé, de braços cruzados e bico nos lábios e insistiu que, mais cedo ou mais tarde, eu concordaria com os absurdos que saem da sua boca, porque no fundo, lá no fundo, eu sei que ela tem razão e que sua linha de raciocínio não é realmente tão diferente da de Bauman.

Desisti de tentar persuadi-la ao contrário. A quem eu quero enganar? Abby é mais inteligente e convicta das coisas do que eu. Honestamente, nunca fui do tipo de pessoa que tem uma fé. Que crê realmente em qualquer coisa, real ou irreal, sobrenatural ou não. Nunca me meti com partidos políticos, nunca liguei para times de futebol ou coisa que o valha. Defender qualquer ideologia, ser louca a ponto de brigar por algo sempre me pareceu muito exaustivo e eu estou cansada desde criança, então...

Mas inegavelmente há algo que sempre quis: atenção.

Que criança não a deseja? Especialmente aquelas que têm a atenção negada tantas e tantas vezes como eu. Crianças órfãs, abandonadas à própria sorte, sonhando e chorando a noite desejando uma família. Essa sou eu. Sempre fui eu. Continuo sendo. Mesmo odiando isso.

Ninguém me demandou tanta atenção quanto Abby tem feito, essa é a verdade incontestável. Se essa atenção é algo doentio, errado, maluco, cheio de segundas intenções, não é esse o ponto. Não posso argumentar contra isso, mas... É atenção. É o que eu sempre busquei. E agora eu tenho. Não sei se isso me assusta ou me impressiona.

Uma coisa que costumava acontecer frequentemente, dando intervalo de tempos em tempos, mas voltou a me pegar na última semana são os pesadelos. Eu os tenho desde criança. Às vezes seus conteúdos dão uma modificada, mas é basicamente a mesma coisa: envolve gritos e choros estridentes de criança. Uma das crianças gritando "não vá" sou eu, e logo depois essa criança - que agora já é adulta - implora para que outras pessoas fiquem. Mas todas elas se vão. Homens, mulheres, amigos, colegas... Até mesmo Joel.

A Caçadora [ellabs]Onde histórias criam vida. Descubra agora