A Caçadora

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Voltamos para casa silenciosas depois do abraço no píer.

— Será que eu posso passar a noite aqui em cima? — pergunta baixo, antes de virar-se para me encarar ainda com o rosto vermelho por ter chorado.

Ellie me parece bem vulnerável, quase sem barreiras, exceto pelas que eu própria coloquei depois do que fiz aquele dia.

— Claro que sim. Na verdade, eu pensei sobre isso e ia te sugerir algo.

Nós duas tiramos os casacos e eu os penduro de volta atrás da porta, assim como sua touca. Ellie permanece quieta em seu canto me observando.

— Como você decidiu que quer mesmo ficar aqui, não há mais motivos de ficar... trancada lá embaixo, sabe. Pensei que poderia vir morar aqui em cima. Há um quarto disponível, você teria mais espaço, mais ventilação, uma janela... coisas normais. — sugiro em tom baixo, me sentindo estranha e tímida ao fazê-lo, porque nunca pensei que me veria nessa posição.

Confesso que por mais que eu tenha idealizado que um dia poderia dar certo os meus experimentos e alguém pudesse gostar de mim, eu não imaginei como seria depois. Nunca pensei no que fazer caso alguém quisesse de livre e espontânea vontade ficar do meu lado. Agora, tenho que fazê-lo e é bem assustador.

Eu não sei como são as regras de um relacionamento. Não sei o que posso ou não fazer e dizer. É muito angustiante. Porque, quando alguém não está trancado no meu porão, à mercê das minhas vontades, isso significa que eu não posso fazer o que eu bem entendo, do contrário ela irá embora. E eu não quero que Ellie decida ir embora. Eu quero que ela deseje ficar.

Ela está me encarando em silêncio há alguns segundos.

— Tem certeza? Tem certeza que me quer aqui em cima com você?

Sua pergunta me indica que Ellie é mais perspicaz do que eu poderia supor, e acho que ela consegue ler através do meu olhar os meus pensamentos de medo envolvendo intimidade. Ela sabe que permiti-la ficar tão próximo de mim significa muito.

— Tenho. Eu não sei como vai ser, porque nunca fiz isso antes... Não sei morar com outra pessoa, mas estou disposta a tentar esse arranjo. Acho que pode ser benéfico para nós duas nessa nova "fase" da nossa relação. O que acha?

— Eu acho que você pode estar certa. Pode ser bom.

Dou um sorriso e Ellie acaba sorrindo de leve também, mas não muito, porque precisa continuar durona. Minha garota.

— Bem, vou te mostrar seu quarto... daí você pode pegar suas coisas lá embaixo e levar até lá.

Depois que eu indico o seu quarto, que fica ao lado do meu no segundo andar, eu ajudo Ellie a pegar todas as suas coisas; os livros que levei para baixo, a caixa de música, as roupas e os chocolates que ficaram, além do seu cobertor e do travesseiro com o qual se habituou.

Quando enfim termina de ajeitar suas coisas no quarto, nós descemos de volta à sala e nos sentamos em frente a lareira acesa com uma garrafa de vinho que peguei na adega. Nós duas seguramos taças cheias até a metade de vinho tinto. O aparelho de som está ligado, tocando baixinho alguma música clássica que não reconheço a quem pertence.

— Há quanto tempo você vive sozinha? — pergunta de repente, quebrando o silêncio prolongado entre nós.

O que ela quer me perguntar na verdade é: há quanto tempo meus pais morreram.

— Seis anos, desde que meus pais morreram.

Estou segurando minha taça, inclinada com os cotovelos sobre as coxas, encarando as labaredas, vendo como o fogo queima a lenha impiedosamente. Já estamos na terceira taça de vinho. Me sinto mais leve, sem tanto filtro.

A Caçadora [ellabs]Onde histórias criam vida. Descubra agora