A Presa

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Desde que passei a ouvir no aparelho de som as músicas que Abby me deu de "presente", notei que além das bandas de rock que eu adoro, ela realmente adicionou coisas diferentes. Tipo Lana del Rey, Madonna e até... Taylor Swift, o que eu achei bem esquisito, porque apesar de escutar umas canções escondidas, nunca revelei no instagram ser fã daquela loira metida a besta. Então como Abby poderia saber? Como iria intuir pela minha aparência dócil e menininha que eu seria uma swifter secreta? A única resposta para essas perguntas é a mais óbvia: Abby escuta Taylor Swift, assim como Lana del Rey e todas as outras merdas que botou neste aparelho. E aparentemente selecionou a dedo cada canção, porque fico me atentando nas letras e parecem convenientemente combinar com a nossa situação. Seja lá qual for a nossa situação.

No entanto, há uma canção em específico que apesar de me agradar muito os ouvidos e que me era desconhecida até então, não consigo decifrar a mensagem. Estou ouvindo-a agora.

"Oh, I love it and I hate it at the same time you and I drink the poison from the same vine... Oh, I love it and I hate it at the same time hidin' all of our sins from the daylight. From the daylight, runnin' from the daylight, from the daylight, runnin' from the daylight..."

Veneno, obviamente, é uma analogia. Mas a quê? Que veneno Abby e eu tomamos em comum? Não faço ideia. Não consigo mesmo imaginar o que nós duas podemos ter em comum. Por mais mal criada, grossa, boca suja e qualquer outra merda que eu possa ser, jamais machucaria alguém deliberadamente - por puro prazer - como ela o fez. Eu só mataria se fosse realmente necessário. Tipo legítima defesa. Ou para defender alguém que eu amo.

É aí que está. Não sobrou ninguém para amar.

Penso que o que poderíamos ter em comum que até explicaria alguma de suas bizarrices seria se Abby também fosse órfã, mas não é o caso. Ela citou o pai em algumas ocasiões, embora não tenha dado muitas informações sobre ele, tampouco sobre sua infância ou qualquer coisa da sua vida. Na verdade, apesar de querer afoitamente que a gente se conecte, e que adore ouvir eu falar sobre qualquer coisa, noto que minha carrasca tem dificuldade em se abrir minimamente. Quando eu faço perguntas diretas, igual o dia que questionei sobre as outras, Abby me deu respostas francas. Fora isso, não arranquei muita coisa.

Minha cabeça está martelando desde ontem à noite sobre o fato dela ser trans.

Abby ficou tão constrangida com o ocorrido que não voltou para trazer o meu jantar, mas eu não me importei. Me alimento mais vezes que alguém numa prisão, e meu cardápio é variado, gostoso e não posso me queixar de fartura. Seria hipócrita se o fizesse.

Hoje cedo eu ouvi o barulho discreto que ela fez ao abrir a porta e os passos cuidadosos que deu para colocar a bandeja sobre a mesa e retirar-se como se fosse invisível, acreditando - ou querendo acreditar - que eu estava mesmo dormindo, mas provavelmente ela sabia que não. Assim como eu sabia que Abby queria me evitar até digerir o ocorrido e ter coragem de me encarar e se explicar.

É, Abigail Anderson, você não é a única boa em observar as pessoas...

Posso estar presa aqui embaixo, sem acesso a internet e mesmo que tivesse, duvido que essa maluca tenha redes sociais ou algo assim, mas convivendo diariamente, a gente aprende muito sobre as pessoas. Bem mais do que elas publicam em fotos no feed.

Sei quando Abby está com medo, raiva, dúvida, hesitante. Conheço as mudanças bruscas em sua fisionomia, sei o quanto ela se esforça em não me deixar ver o seu lado mais agressivo, porque, tanto pelas circunstâncias quanto pelo seu porte físico eu já deveria estar assustada e sei que no fundo Abby não quer que eu sinta medo dela.

"I just wish I had a friend like him.

Someone to give me five leanin' in my back, whisperin' in my ear.

A Caçadora [ellabs]Onde histórias criam vida. Descubra agora