A Presa

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Daylight começa a tocar.

A mesma música que eu ouvia horas atrás pensando nela, tentando decifrar Abby. Tentando decifrar o significado nas entrelinhas da canção.

Agora, depois do que ela compartilhou comigo sobre seu passado, acho que enfim eu entendo. Nós tomamos o mesmo veneno, porque somos iguais. Duas crianças abandonadas, negligenciadas, cobertas de dor.

A dor que sempre enxerguei no reflexo dos meus olhos através do espelho, eu enxergo agora em seus olhos cinzentos, imóvel diante dela, com medo de que se eu ousar me mover um milímetro, tudo se perca para sempre.

Abby também não se move. Eu percebo que mal estou respirando, e acho que o mesmo ocorre com ela. Meus olhos descem a tempo de ver a subida de seu peito em busca de ar. Eu reparo em suas veias proeminentes no pescoço e subo até os lábios carnudos, que estão semiabertos. Ela repara em como meu olhar demora e o retribui, mas permanece parada.

Não sei o que está acontecendo nesse momento. Não faço ideia em como chegamos nisso, nem porque diabos eu tive a brilhante ideia de falar sobre o nosso beijo - o que claramente criou essa tensão explosiva entre nós.

Eu não quero provocá-la de forma alguma. Esse nunca foi meu plano. Não quero tentar seduzir Abby, porque sei que isso não seria nada inteligente da minha parte. Tentar seduzi-la para conseguir escapar daqui me parece um plano ruim, assim como qualquer outro que passou em minha cabeça ao longo dos dias. Na verdade, eu não tive um plano real até agora para isso porque me falta o principal: um motivo. Se vou arriscar minha vida para fugir, tem de haver um grande motivo para isso. Qual motivo eu teria de querer voltar lá para fora?

Não sei...

Segura comigo em seus braços. É o que Abby acabou de dizer. Que se sentiu segura comigo em seus braços, da mesma forma que eu me senti. Só que eu nunca lhe revelei isso, portanto não tem como ela saber. Então como diabos essas palavras exatas escaparam dessa sua boca maldita? Por um acaso a desgraçada tem o dom de ler pensamentos? Ela consegue ver através dos meus olhos o que estou sentindo? Consegue decifrar o tsunami de emoções que há aqui dentro? Porque nem mesmo eu consigo.

— Por que está me olhando desse jeito? — sussurro, ainda imóvel.

Há um leve sorriso lascivo em seus lábios. É tão sedutor, e isso me dá raiva.

— De que jeito?

— Como se quisesse... me beijar... — resmungo.

— Porque talvez eu queira.

— Se você encostar em mim, eu vou te socar.

— Eu sei.

— Não ouse.

— Eu não vou te tocar à força, Ellie. — garante em tom firme, com um olhar arrebatador que me mantém presa. — Só vou encostar em você quando me pedir... — que presunçosa de merda!

— Isso nunca vai acontecer. Pode tirar o seu cavalo da chuva!

O sorriso sarcástico explode em seu rosto, mas a gente ainda não se moveu e ainda ousamos encarar os lábios uma da outra.

Eu a odeio tanto. Queria poder socá-la agora, mas seria inútil tentar, então...

— Aposto que você quer me bater agora.

— Estou começando a achar que você consegue ler mentes, Abby. — debocho.

— Ou você está se tornando uma garota previsível, o que eu não esperava de você.

— Não me provoque, ou vou ter que dar um soco nessa sua cara idiota! — ladro.

— Sabe que eu posso quebrar seu braço facilmente, não sabe? Basta... — ela enfim se move, bem sutilmente, erguendo sua mão direita, tão grande, composta por dedos grossos de unhas rentes. — Um único gesto, e eu quebro seus bracinhos finos como se fossem lápis.

A Caçadora [ellabs]Onde histórias criam vida. Descubra agora