A Presa

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Dois meses passaram.

Nos últimos quinze dias, as coisas regrediram um pouco.

Foram duas semanas estranhas, para ser honesta. Abby mudou depois da festa em que eu disse que queria beijá-la, mas que ela se recusou prontamente, embora tenha se declarado para mim - o que sequer faz sentido. Mas, em sua cabeça insana, o fato de eu estar embriagada à época me impedia de ter um bom julgamento das minhas ações, então o beijo não teria sido realmente consensual.

Como alguém que sequestra outra pessoa e a coloca em cárcere privado pode ter alguma noção de consensualidade? É, no mínimo, muito contraditório.

À essa altura, eu nem tento mais entender suas lógicas. E, confesso ter ficado muito constrangida pelas minhas atitudes na festa e agradeço por Abby não ter me permitido beijá-la. Teria sido um erro grotesco da minha parte fazer isso. Eu estava muito bêbada para cogitar beijar minha sequestradora. E, apesar de estar sóbria agora e ter a noção que teria sido um erro, não consigo deixar de imaginar como teria sido. Estou assombrada.

Eu vivo repassando na minha mente a noite em que a conheci, o clima agradável entre nós e, principalmente, o beijo tão equilibrado, tão doce a princípio, beirando à pureza, mas tão firme e intenso depois. Sua boca, do que eu me lembro bem, tinha um sabor agradável. E ter seus braços ao meu redor realmente me causou uma sensação de familiaridade e paz.

Outra coisa que penso com frequência: em seu abraço. Especialmente naquele caloroso que recebi quando, em crise, me pus a chorar feito uma garotinha. Abby me segurou tão firme, mas tão gentilmente. Só Joel fez isso comigo, e ele foi a pessoa mais importante da minha vida. Pena que o destino achou legal arrancá-lo de mim precocemente. Se deus existisse, ele tinha um péssimo senso de humor e eu o odiava por isso.

Apesar de toda essa estranheza, Abby permanecia gentil e atenta. Minhas refeições chegavam sempre nos horários certos, os cardápios continuavam deliciosos, ela repunha meu estoque de chocolate, lavava minhas roupas, me perguntava se havia algo que eu quisesse que me trouxesse. Mas ela nunca ficava. Apenas deixava a bandeira e ia embora. Eu queria que Abby ficasse, que se impusesse, que cobrasse minha "dívida" de participar ativamente desse processo de nos conhecermos melhor, mas ela parecia até ter desistido e isso me deixou desesperada.

E se Abby, depois da forma estúpida que eu a tratei naquela noite - como sempre faço -, tivesse se cansado de mim? Da minha frieza e grosseria? E se ela realmente achasse que fosse impossível me conquistar e por isso não estava mais fazendo nada para se aproximar? Esse seria o meu fim. E não no sentido que Abby estivesse planejando me matar. Não. Eu nem pensava nisso. Mas no sentido de que ela fosse apenas me manter ali, me alimentar, me vestir, me permitir ter algum lazer, mas não querer mais a minha atenção, o meu afeto...

— Abby, você desistiu de mim? — pergunto num fio de voz ao vê-la virar-se de costas para partir.

Abby se detém antes de chegar à porta e fica imóvel por longos segundos.

Observo sua silhueta volumosa. Regata preta, calça preta, botas pretas. Cabelos trançados. Músculos à mostra. Atraente como sempre.

Ela se vira bem devagar e me olha impassivelmente.

Eu queria poder ler seus pensamentos, mas ela parece decidida a não me deixar fazer isso.

— Desistir de você? — cruza os braços. — Do que está falando, Ellie?

— Desistir de mim... — não quero chorar, não quero ficar vulnerável, mas sou tão sensível, mesmo não querendo admitir. E eu não suporto a ideia de que talvez Abby esteja desistindo. — Sei lá, porra. Você nunca mais tentou conversar comigo, não fica nem dois minutos aqui dentro. Achei que a gente fosse começar a ver filmes juntas todos os dias, como você tinha sugerido. Ou que ao menos conversaríamos algumas horas... mas parece que você só... desistiu... — minha voz foi ficando mais falha durante meu discurso e sei que estou nitidamente abalada.

A Caçadora [ellabs]Onde histórias criam vida. Descubra agora