A Presa

505 32 72
                                    


Eu deveria ser mais esperta. Mais forte. Eu deveria ter me atentado aos sinais que estão diante dos meus olhos o tempo todo. Aos fatos óbvios: fui sequestrada. Estou em cárcere privado. Nada do que está acontecendo é consensual, porque não foi da minha vontade. Por isso, "só" por isso, eu deveria odiá-la, desprezá-la e querer fugir daqui desesperadamente. Só que não quero. Descobri que não tenho a menor vontade de ir embora, ainda que às vezes tenha muita vontade sim de ir lá fora tomar um sol, sentir o ar fresco, ouvir o canto dos pássaros. Coisas normais e saudáveis que estão me fazendo falta. Mas não tenho o menor interesse em retornar a cidade, a minha vida de antes. É como se tudo que vivi até hoje tivesse sido apenas um sonho ruim. Algo repetitivo, triste, enfadonho. Agora, eu realmente me sinto viva. As emoções estão sempre à flor da pele.

Decidi que preciso testar os limites de Abby. Só assim poderei conhecê-la por completo. Poderei ver, com meus próprios olhos, do que ela é capaz. Não posso me conformar com nossa rotina extremamente perfeita, porque sei que é apenas uma ilusão. Por mais doce e gentil que Abby possa ser, por mais que esteja apaixonada por mim, há muito mais dentro dela. Há um animal selvagem que não pode ficar enjaulado por muito tempo. Eu sei disso. E ela também sabe. Não posso me entregar a alguém que eu não conheço completamente. Alguém que só tenho vislumbres da verdadeira essência.

Eu sei do que ela é capaz porque me trouxe até aqui e me contou o que fez com minhas antecessoras, mas não presenciei suas explosões de raiva, seus rompantes violentos. Abby não foi agressiva realmente nem quando eu lhe agredi - e não foram poucas vezes em que isso aconteceu. Então, sim, me sinto na obrigação de levá-la ao limite. Sei que é arriscado, mas é o único jeito de eu descobrir se sou mesmo capaz de fazer isso. Se o que eu sinto não é apenas projeção, mecanismo de fuga, síndrome de Estocolmo e qualquer merda assim. A gente só pode amar aquilo que verdadeiramente conhece.

— Você anda meio estressada esses dias ou é apenas impressão?

— Impressão sua. Nunca estive melhor. — digo com desdém, sem olhá-la.

Estou sentada à mesa com um livro novo em mãos, uma coletânea de poemas indecentes que Abby me trouxe.

Abby está sentada à minha frente. Posso sentir seus olhos sobre mim.

— Então por que está agindo tão... estranho? Com frieza? — sinto pela sua voz que está incomodada. É o que eu quero. Tirá-la da zona de conforto.

— Dizer que estou agindo estranho é eufemismo, né. Sou estranha naturalmente, cara. Além disso, nas condições na qual eu vivo, espera-se que eu fique pior a cada dia... — falo com deboche, abrindo um sorriso.

Não quero magoá-la, mas eu preciso agir assim para que meu plano funcione. Já é o terceiro dia sendo fria, debochada, dizendo coisas para provocar emoções negativas nela, para fazer Abby reagir, me mostrar o seu pior.

— Ellie... converse comigo, vamos. Não estou gostando disso.

— Eu menos ainda. — fecho o livro bruscamente e a olho séria. — Detesto tudo isso.

— O que é "tudo isso"?

— Esse lugar. Essa vida que você me impôs. Ou acha mesmo que eu me acostumaria a viver enjaulada como um animal, comendo na hora que você quer, comendo o que você quer, usando as roupas que você escolheu, te dando atenção e carinho nas horas que você se dispõe a ficar aqui comigo? Acha que tenho cara de otária, Abby? Que sou uma tola? — rio com escárnio, me sinto realmente raivosa ao dizer essas palavras. — Odeio essa merda.

— Odeia? Porque às vezes não é o que parece! — fala irritada, franzindo o cenho na carranca costumeira, que tinha desaparecido depois que nos entendemos. — Muitas vezes você parece adorar essa vida.

A Caçadora [ellabs]Onde histórias criam vida. Descubra agora