A Presa

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Estou agarrada no corpo rígido de Abby, encolhida no sofá com as pernas dobradinhas, tal qual uma garotinha. Estamos fazendo uma verdadeira maratona de filmes de terror. Começamos pelo Halloween, meu favorito - porque ela claramente ama me agradar -, mas agora estamos vendo O Exorcista - talvez eu também queira agradá-la. O fato é que após o amasso delicioso que demos, houve uma mudança considerável no clima. Toda a tensão ruim que pairava entre nós nas últimas semanas desapareceram e aquela sensação esquisita que eu estava sentindo na sua presença ficou ainda mais forte. Uma sensação de familiaridade, como se nos conhecêssemos desde sempre. O que era perigoso, porque poderia significar um sintoma do borderline: encontrar alguém, se envolver com este alguém, idealizá-lo e amá-lo profundamente. Elegê-lo como "o escolhido". E tudo isso, claramente, ocorre de forma inconsciente, mas... eu estava tentando evitar a todo custo, porque se isso não é bom ou saudável no mundo lá fora, imagine aqui dentro, neste contexto. É mil vezes pior do que "apenas" a Síndrome de Estocolmo. É uma combinação perigosíssima.

O fato é que independente do meu transtorno e da síndrome, a paixão, inerentemente, é um estado de adoecimento do sujeito. É um monte de projeção que a nossa mente faz em relação ao outro, e vem acompanhada de vários sintomas físicos adoecedores, como esse embrulho no estômago que estou sentindo agora e o coração disparado toda vez que, agarrada em Abby vendo filme, começo a lembrar do seu volume roçando minha buceta, ou os seus lábios quentes e macios contra minha boca. Então, é... Tudo isso para dizer que estou apaixonada por Abby, tanto quanto ela está por mim, ainda que eu não possa ter uma forma concreta de avaliar os sentimentos dela. Acho que a gente funciona parecido, logo nossas intensidades são semelhantes. Também vejo um medo enorme de rejeição de sua parte, e isso explicaria porque, provavelmente, num momento de fúria, ela assassinou as três cobaias que me antecederam. Abby simplesmente foi incapaz de lidar com a rejeição nítida de suas vítimas, que certamente a desprezavam.

Isso me faz pensar que há a possibilidade dela ser borderline também. Medo de rejeição, essas suas ideias loucas para formar a todo custo uma conexão com alguém a ponto de simplesmente sequestrar e trancar uma pessoa em seu porão... Tudo isso é uma forma de controle para não ser abandonada. E, embora possa ser fria e agressiva em alguns momentos, não há como negar a sua sensibilidade, especialmente quando eu firo os seus sentimentos. Eu vejo em seus olhos, na expressão em seu rosto, no bico que ela faz o quanto Abby é sensível, o quanto ela se aborrece, o quanto é... romântica. Por isso que hesitou tanto em me beijar ao achar que eu poderia estar "brincando" com suas emoções. Ela me deseja tanto quanto eu a desejo, mas é mais do que isso. Abby está apaixonada e quer se comprometer comigo. E, apesar dos pesares, ignorando toda a bizarrice da nossa situação, isso é romântico pra caralho.

Nunca ninguém fez nenhum gesto romântico. Todas as vezes que me envolvi com alguém, fui eu que tive que me desdobrar para fazer coisas agradáveis pela outra pessoa, para conquistá-la e tentar a todo custo retê-la comigo, só que no fim todas escaparam pelos meus dedos, me trocando por pessoas melhores e isso só foi me deixando mais frustrada e fechada. Porque, aparentemente, meu amor era apenas tolerado quando deveria ser venerado.

De repente, sinto Abby me encarando. Ao invés de olhar para o filme, tem o rosto virado e os olhos vidrados em mim. Notando isso, depois de um tempo, ficando já incomodada, eu a olho sem graça.

— O que é que você tanto me encara, criatura?

— Estou com medo de estar sonhando. Com medo que você mude de ideia a qualquer momento. Isso é mesmo real? Me refiro a isso, a nós duas aqui, assim... — me aperta em seus braços e sorri, esse sorriso leve e quase infantil. — O que aconteceu naquela hora... você e eu... foi real?

A Caçadora [ellabs]Onde histórias criam vida. Descubra agora