Capítulo dois: Mael
Sob o céu cinzento que prometia mais um inverno rigoroso, minhas mãos doíam com o mínimo esforço que eu fazia, trocando cada gota de suor por uma lufada de ar gelado.
A pele das minhas mãos começava a descascar, vítima do frio que avançava sem piedade, trazendo consigo o sussurro da neve que logo cobriria tudo. Encontrava algum conforto no calor fugaz da pele contra o tecido grosso na minha cintura, onde minhas mãos buscavam refúgio, esfregando-se em um ritmo quase constante, como se tentassem acender uma fagulha de vida naquele deserto de frio.
A generosidade deles era mais escassa que as folhas secas que se agarravam às árvores, esperando o vento que as levaria para longe. Desde que fui trazido para este lugar, o líder e sua família se tornaram sombras distantes, figuras que eu só ouvia falar em murmúrios e boatos.
Fui entregue a estranhos, pessoas que me olhavam com olhos calculistas, medindo meu valor como príncipe e pesando o custo de minha segurança. Eles me deixaram à mercê do destino, com um descaso tão casual que era como se dissessem 'foda-se' sem sequer mover os lábios.
O vento, um sopro frio e cortante, invadia o meu cativeiro, um espaço tão sombrio que até a luz parecia hesitar em entrar. A única janela, minha conexão frágil com o mundo exterior, era uma zombaria de abertura que eles chamavam de quarto.
Nem mesmo um cavalo encontraria conforto neste lugar miserável.
Arrastei-me até a janela com passos pesados, cada movimento um lembrete da minha condição. Ao fechá-la, a dor aguda voltou a se manifestar em minhas palmas, como se mil agulhas finas fincaram sobre a pele. Foi o suficiente para despertar a dor adormecida em minhas mãos.
Olhei para elas, pálidas como a neve lá fora, quase translúcidas, revelando o vermelho vivo do sangue que pulsava sob a pele fina, agora manchando a superfície com pontos rubros. Murmurei uma praga abafada e agarrei um retalho de tecido para conter o sangramento.
Foi nesse instante, enquanto lutava contra a minha própria fragilidade, que a porta do cativeiro se abriu com um rangido preguiçoso. Um bárbaro se postou no limiar, lançando-me um olhar que misturava presunção e desdém.
Ele se ajustou, arrumando as calças de forma descuidada, e eu não pude deixar de notar a maneira como sua barriga se sobrepunha ao cinto. Sua barba era selvagem, quase como a de um alce, mas seus olhos eram pequenos e cautelosos.
Embora sua presença fosse imponente como a de um alce, havia nele uma inofensividade quase cômica, uma contradição ambulante que me fazia pensar em ovelhas vestidas para um baile de lobos.
Ele grunhiu algo ininteligível, uma mistura de sons guturais que mal formavam palavras, e com um gesto descuidado, lançou um saco de pano desgastado aos meus pés.
— Comida. — ele declarou, como se estivesse me concedendo um favor real. O saco aterrissou com um baque surdo, levantando uma nuvem de poeira do chão de pedra.
Eu o observei por um momento, seus olhos pequenos e astutos tentando decifrar minha reação. A comida dentro do saco era mais escassa do que nos dias anteriores, apenas algumas fatias de pão duro e um pedaço de queijo mofado. Era um reflexo da minha situação cada vez mais desesperadora, um lembrete de que até as necessidades mais básicas estavam se tornando um luxo.
Ponderando entre a gratidão e o desdém, optei pelo silêncio. Deixei que ele interpretasse como quisesse, minha expressão impassível. Ele esperou, talvez por um agradecimento ou um sinal de submissão, mas eu não ofereci nenhum. Com um resmungo de desapontamento, ele se virou e saiu, deixando-me sozinho com o saco de comida que parecia mais um insulto do que uma dádiva.
Com as mãos tremendo, peguei o saco de pano, sentindo o peso da escassa comida dentro dele. Despejei o conteúdo na mesa de pedra, encarando as fatias de pão duro e o queijo mofado. Sentei-me devagar, cada músculo do meu corpo gritando de cansaço. O pão em minha mão era um lembrete cruel da minha realidade atual, tão distante dos banquetes do palácio que eu mal conseguia me lembrar do sabor da comida bem temperada.
Fechei os olhos e me vi de volta ao palácio, onde até a menor das refeições era uma obra de arte culinária. Lembrei-me de como eu reclamava quando o pato não estava na temperatura perfeita, como se aquilo fosse o fim do mundo. Agora, a memória daquelas reclamações parecia ridícula. Com um suspiro, mordi o pão, deixando que a dura realidade do presente me consumisse.
O pão estava em minha mão, mas o apetite havia fugido. Um som vindo da janela chamou minha atenção, um barulho que não pertencia ao silêncio do meu cativeiro. Deixei o pão de lado, esquecido em sua insignificância, e me aproximei da única fonte de luz e vida neste lugar. Espiei por entre as frestas, e lá fora, o mundo parecia ignorar minha existência sombria.
Mulheres passavam com baldes pesados, suas costas curvadas sob o peso, mas seus rostos iluminados por sorrisos e conversas animadas. Homens carregavam machados de caça, suas posturas orgulhosas e determinadas, como se cada passo fosse uma promessa de prosperidade. E as crianças, ah, as crianças corriam com a alegria desenfreada da inocência, seus risos eram como música, uma melodia que eu quase esquecera.
E então, me atingiu. Havia abundância lá fora, uma comunidade vibrante e cheia de vida. Virei-me para olhar o pão solitário sobre a mesa de pedra e entendi. A escassez da minha comida não era um acaso; era intencional, uma mensagem clara de que eu estava separado, isolado não apenas por paredes, mas por vontade. Eles tinham tudo, e eu... eu tinha um pedaço de pão duro e a memória do que era ter mais.
A raiva começou como uma fagulha, uma irritação pequena e ardente no fundo da minha mente. Mas à medida que eu observava o mundo lá fora, a fagulha se transformou em chamas. Eles estavam lá, vivendo, enquanto eu definhava neste cativeiro, esquecido e faminto. O pão, agora um símbolo do meu abandono, parecia zombar de mim com sua presença inútil.
Com um grito de fúria, agarrei o pão e o lancei contra a parede. Ele se desfez em pedaços, como se até mesmo a comida estivesse se rebelando contra a minha situação. Eu não podia mais ficar parado, não podia mais aceitar essa vida de sombras e migalhas. Era hora de agir, de traçar um plano, de fazer algo, qualquer coisa, para mudar meu destino.
Eu me levantei, a determinação correndo pelas minhas veias como um antídoto para o desespero. Comecei a andar de um lado para o outro, minha mente trabalhando freneticamente. Havia uma janela, havia guardas, mas também havia uma vontade indomável dentro de mim. Eu encontraria uma saída, uma maneira de escapar, de voltar para a luz e para a vida que me foi roubada.
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Coração Forjado
RomanceREMAKE da primeira versão de Coração Forjado!!! O príncipe Mael vivia uma vida de privilégios e deveres, até ser arrancado brutalmente de sua corte e lançado ao coração gelado das terras vikings. Cativo de guerreiros selvagens, ele luta contra o fri...