O corte da lâmina não me preocupava tanto quanto a ideia dos lugares que essa faca já passou. Permaneci ali, imóvel, desafiando a morte com um olhar que dizia mais do que palavras. A faca que ele segurava era claramente feita para o abate de animais, não para o humano, mas sua postura sugeria que ele desejava fazer de mim uma exceção.
Levantei lentamente as mãos, uma oferta de paz que ele certamente não esperava de alguém como eu. Como se isso realmente funcionasse.
— Loiro, não és de nossa terra. — ele grunhiu, a voz áspera como pedras raspando uma superfície. Mas eu não me voltei para olhar sua fisionomia, apenas observei as pontas sujas dos dedos e a lâmina reluzente que segurava com firmeza, como se isso fosse suficiente para intimidar alguém como eu.
— Não sou. — Afirmava com um sorriso desdenhoso, a coragem transbordando do meu ser. — E é por isso que devo retornar ao meu lugar, onde pertenço. — Eu estava decidido a me mostrar valente, apesar da lâmina que me ameaçava. — Vim aqui para pegar um barco emprestado em nome de Ivar. — As advertências do garoto ecoavam na minha mente, mas o que recebi em resposta foi uma risada zombeteira que ecoou em meio à noite.
— Ah, o garoto. Me esqueci, ele deve estar participando do ritual. Mas nunca se juntaria a um fraco como tu. — A lâmina dele se aproximou perigosamente, quase tocando minha pele, e prendi a respiração. Ele não fazia ideia de com quem estava lidando.
Ivar. A menção do nome me fez estremecer. Ele era esperto, sim, mas não era um covarde como aquele homem acreditava.
— Ele é astuto, tem olhos como os de uma águia. Reconheceu a minha índole. — declarei, um tom de desafio na voz, me mantendo firme no meu lugar.
O homem soltou uma risada cínica, claramente não acreditando em mim. Ele parecia se divertir com o que eu dizia, e isso só aumentou minha irritação.
— Não sabe de onde vem, verme. Aquele olhar... — Ele fez uma pausa, como se pesasse cada palavra, o ar entre nós pesava com sua convicção. — Ele é mais orgulhoso do que um rei. Sabe bem quem é o pai que carrega. Um velho homem perigoso.
O pai. A imagem dele veio à minha mente, tão marcante quanto sua presença. Quando o vi pela primeira vez, a sensação era de ser engolido por sua sombra. Seus ombros largos e imponentes diziam tudo sobre sua voracidade e ambição. Aquele homem não era apenas uma figura distante, mas uma força que moldava todos ao seu redor. E eu percebi somente ao vê-lo.
A conversa não me agradava nem um pouco; era uma perda de tempo que se arrastava como a maré baixa em uma costa sem vida. A ansiedade pulava em meu corpo, e eu mordia os lábios para evitar que meu verdadeiro desejo transparecesse. Tudo o que queria era pegar o primeiro barco e partir sem que ninguém notasse minha ausência. Mas esse homem atrás de mim era um verdadeiro empecilho, uma pedra no meu caminho.
— Me ofereça o menor barco que tiver. Ivar irá recompensá-lo por isso. — As palavras saíram de mim, mas soaram vazias, como um eco perdido em um vale sem fim. A lâmina continuava pressionada contra meu pescoço, tão próxima que eu poderia sentir o frio do metal contra minha pele, mas ele se mantinha quieto, como uma estátua, o que me fez duvidar. Por que ele aceitaria? Sou um estrangeiro aqui, e minha palavra valia menos que as cinzas de um fogo apagado. As moedas de Wessex eram nada em Haukness.
O homem, com seu olhar penetrante, parecia avaliar cada sílaba que eu proferia, e, naquele momento de hesitação, algo dentro de mim se rompeu. Num impulso, desvencilhei-me do seu braço, movendo-me rapidamente para o lado oposto da lâmina. Ele escorregou ao tentar me deter, e, por um breve instante, pude ver seu rosto. Esguio e barbudo, não parecia um construtor de barcos, mas sim um desajustado que vivia à margem, lutando contra a própria miséria.
Corri, deixando-o para trás, e meus olhos varreram a costa em busca do barco que havia avistado antes. Ele estava ali, não muito longe. Mas, ao dar meu próximo passo, um braço forte envolveu meu corpo, me prendendo.
Eu uso a força suficiente para me desprender de um homem magro. Mas esse era diferente. Apegava-se a mim com uma intensidade que desafiava minha percepção de poder. Era muito firme. O toque não era do tipo que eu costumava ignorar, e isso me intrigava.
— Parado, flor. — A voz rouca acima da minha cabeça era como um trovão que ecoava em meu peito. Debati-me, mas sua força era esmagadora; quanto mais eu tentava me libertar, mais ele apertava seu abraço. Eu parecia uma piada, uma simples sombra em sua presença. Quem ele pensava que era, me chamando assim?
— Esse desgraçado! Eu vou matar! — A voz esguia que eu havia ignorado se aproximava, cheia de raiva. Não conseguia vê-lo, mas sua indignação era palpável, como um vapor que me envolvia.
— Quieto, velho! — a voz do homem que me segurava soou firme, como uma lâmina afiada cortando o ar.
A curiosidade tomou conta de mim, e não consegui evitar olhar para cima. Era ele. Qual era mesmo o nome dele?
Ele se virou para o esguio, que agora tinha um semblante ainda mais feroz, o ódio evidente em seus olhos.
— Pois bem, Angus, sabes quanto tempo dedico a cuidar de nossos bravos! E essa praga ousou tentar roubar um dos meus barcos! Minha criação! — O carpinteiro exclamava num tom que quase o tirava a voz, mas não provocava reação nenhuma no homem que me segurava.
— Eu cuidarei dele, Bergan. — As palavras saíram de sua boca com a precisão de uma espada. — Apenas continue teu trabalho.
Observava a interação, as veias pulsando de ansiedade enquanto o desejo de liberdade ardia dentro de mim. A liberdade estava ali, logo ali, nas margens, mas eu não poderia tê-la. Não assim. Não agora. Merda. Cada segundo que passava me deixava mais impaciente, como um pássaro preso em uma gaiola, apenas aguardando a chance de voar para longe.
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Coração Forjado
RomanceREMAKE da primeira versão de Coração Forjado!!! O príncipe Mael vivia uma vida de privilégios e deveres, até ser arrancado brutalmente de sua corte e lançado ao coração gelado das terras vikings. Cativo de guerreiros selvagens, ele luta contra o fri...