Porque cai a Chuva sobre a Utopia

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Tudo que ouvia eram vozes, gritos, lamentos, choro. Próximos, distantes, constantes. E eu não conseguia calá-los. Era ensurdecedor e doloroso. Doía no corpo e na alma. Ao mesmo tempo que sentia algo expandir-se dentro de mim, esse mesmo algo também se contraía. Quebrava-se e reconstruía-se. Movia-se num pulsar intermitente, vivo como um coração, quente como o fogo; e eu ardia nesse incêndio que me consumia de dentro para fora. Era desesperante. Tentei gritar para que parasse, mas em vão.

Até que, subitamente, despertei. As vozes distanciaram-se até estarem no fundo da minha mente para darem lugar à luz que entrava pelas janelas. Respirei fundo e tentei sentar-me, sem sucesso. O meu corpo pesava o dobro e não consegui mexer mais do que os dedos das mãos e dos pés.

– Sem esforços, Lynch.

– Professor Sharp? O que aconteceu?

Pisquei os olhos insistentemente para obrigar-me a despertar.

– Uma confusão e tanto – a sua voz soou cansada. Ele estava sentado na cadeira ao lado da minha cama e tinha nas mãos um livro. – O ministério veio mais cedo do que o previsto e trouxe mais aurores do que o esperado. Felizmente, conseguimos controlar a situação, embora não a tempo de que loucuras fossem cometidas. Outra vez.

Apesar de ainda sentir-me confusa, as memórias do que tinha acontecido no repositório começaram a surgir e a preencher a minha mente. A culpa pesou-me nos ombros.

– Era isso ou o repositório ficaria instável – justifiquei, inflexível.

O professor Sharp fechou o livro num baque seco e endireitou-se na cadeira.

– E controlá-lo-íamos se preciso fosse, exatamente como o Fig fez antes.

Busquei forças no além para sentar-me muito reta e séria.

– Para morrer também? Não, claro que não! Não quero ver mais ninguém morrer!

– E acha que algum de nós quer vê-la morrer? Deveria saber que o senhor Sallow ficou desesperado e pessoas desesperadas fazem coisas sem pensar...

Estreitei o olhar sobre o professor. Uma aura sombria rodeava-o, na sua voz carregava um peso para além daquele que verbalizou e eu só pude pensar o pior, mas guardei-o para mim. Fosse ou não fosse verdade a hipótese que cruzara a minha mente, seria mais sábio guardá-la para mim e questionar Sebastian diretamente. O professor Sharp era demasiado atento e inteligente para aceitar qualquer desculpa que tentasse usar para justificar as minhas questões sobre as suas palavras. Como nada disse, ele continuou:

– Antes de pensar em proteger quem está à sua volta, certifique-se que consegue se proteger. Coloque-se no lugar do senhor Sallow, por exemplo, e imagine alguém, que já perdeu tanto como ele, perdê-la a si também.

Senti o rosto corar de vergonha e, incapaz de continuar a olhá-lo nos olhos, baixei a cabeça para o meu regaço.

– Dados os acontecimentos recentes, achamos melhor que a Miss Lynch se afaste por algum tempo, até entendermos como reage à magia do repositório. – Não fui capaz de protestar. – Entenda que esta decisão já está tomada. Ainda estamos a decidir para onde será levada e com quem. Posso assegurar, desde já, que não será o orfanato.

Limitei-me a concordar antes de dar voz às restantes dúvidas.

– O que aconteceu depois que perdi a consciência?

– Tivemos que organizar a confusão que criaram. Alguns dos Aurores foram escoltados de volta para o ministério para interrogatório. Os restantes, incluindo os dois sujeitos que orquestraram tudo isto, foram levados também, todavia, sob outras... circunstâncias.

Entre Luz e Sombras (Sebastian Sallow x FemOC)Onde histórias criam vida. Descubra agora