Quadro

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O dia se estendeu em treinos, conversas e risadas. Lance e eu continuamos nossas sessões de espadas, mas agora havia uma sensação diferente entre nós. O título de lorde não mudou a essência de Lance; ele ainda era o mesmo instrutor gentil e dedicado.

À noite, após um jantar tranquilo, nos encontramos na biblioteca. Lance, com um olhar convidativo, me mostrou um quadro quase de meu tamanho. Era uma família, uma mulher loira segurando uma criança em seus braços, um homem muito parecido com Lance e ao seu lado, um garotinho de sorriso largo. 

— Há algo que quero lhe mostrar, Náiade — apontou para o quadro. - Essa é minha família. Emily Shelburne, minha amada mãe — apontou para a mulher loira, cujo rosto transmitia uma gentileza surpreendente. — O bebê que segura nos braços, é meu irmão Henry Shelburne. Eu sou o garoto sorridente e segurando meu ombro, está meu pai, Thomas Shelburne — ao dizer o nome de seu pai, seu rosto expressou um amargor. 

— É muito parecido com ele — observei.

— Acredito que minha maldição seja ter nascido a sua cópia.

Lance continuou a compartilhar sua história, revelando detalhes sobre sua infância e as complexidades de sua família. Ao longo das palavras de Lance, pude sentir as camadas de sua vida sendo desveladas, cada memória moldando o homem diante de mim.

— Meu pai era um comerciante respeitado, mas, por trás da fachada, ele se envolvia em negócios obscuros. — Lance olhou para o quadro, seus olhos refletindo uma mistura de emoções. — Thomas Shelburne era um homem cruel com seus inimigos, seus filhos e sua mulher. Um homem de Deus, cegado pelo ego e deslumbres de vontade divina. Ele acreditava e seguia a igreja, causou a morte de inúmeras mulheres inocentes, as quais ele considerava bruxas. 

Ao sombrio relato de Lance, eu escutava atentamente, sentindo a atmosfera pesada da narrativa. A história de sua família era marcada por sombras profundas, e Lance, mesmo com seu título de lorde, carregava o fardo de um passado tumultuado.

— Cresci sob a influência desse homem — continuou Lance, com um olhar distante. — Ele acreditava que nossos privilégios eram concedidos por uma divindade que o guiava em sua busca por poder. Eu vi coisas horríveis, Náiade. Mulheres e homens sendo julgados e condenados, muitas vezes sem razão.

A expressão de Lance revelava uma mistura de raiva e tristeza, como se ainda estivesse processando as cicatrizes deixadas por seu pai. Enquanto ele falava, meu respeito por sua jornada aumentava, e a compreensão de como ele se tornara quem era se desdobrava diante de mim.

— Não demorou muito para que minha mãe me colocasse para estudar fora, foi aí que minha paixão por livros iniciou-se. Ao contrário da crença, a ciência não se mantêm em superstições e repugna o novo. Isso me ajudou a ficar um tempo longe das garras de meu pai. — sua expressão, que antes era repleta de fascínio ao falar da ciência, agora se tornou amarga e triste. — Quando voltei, recebi a notícia de que minha mãe estava morta. 

  O mesmo olhou para o chão. 

— Sem minha mãe para me proteger, eu me tornei a imagem de meu pai, me tornei pior. 

  Diante de sua confissão, algo se retorceu em meu estômago. Não conseguia ver Lance como um homem cruel, um assassino, como descreveu seu pai. Mas, ouvir de sua boca, me causou um espanto. Isso explicaria a facilidade ao matar e se livrar de Ezequiel. 

— Sei que possui um coração bom, Lance. Vejo isso desde que me salvou do Rio e ainda consigo ver a bondade no senhor, mesmo agora. 

  Ele soltou um sorriso discreto e voltou a olhar para o quadro. 

— Não me viu por inteiro, não sabe o quanto de crueldade eu herdei daquele homem...

Remorso, dor, era isso que banhava sua voz agora. Peguei sua mão, olhando para o quadro. Entretanto, nosso silêncio foi interrompido com o abrir de portas. Era Magalhães, o que antes em seu rosto transbordava uma áurea de criança brincalhona, agora, estava mais sombria do que um dia fui capaz de testemunhar. 

— Está na hora da senhorita dormir, eu te levarei ao seu quarto. 

O mesmo me conduziu até meu quarto, passando pela sala da casa e de relance, vi um homem sentado na poltrona. Estava escuro suficiente para que eu não visse seu rosto. 

  Quando chegamos ao meu quarto, Lance segurou a porta. Seus doces olhos estavam escuros, sem brilho algum e inquietos. 

— Náiade, preciso que abra esta porta apenas quando eu bater. Certo? 

— Há algum problema? Quem era aquele homem sentado? Ele é perigoso? 

Lance olhou para o corredor e entrou em meu quarto, fechando a porta. O mesmo levou suas mãos até meu rosto, acariciando minhas bochechas com seus polegares. Suas mãos estavam gélidas. 

— Ele é apenas um negociador, embora seja um pouco sádico. Preciso que fique aqui, para não desviar a atenção daquele homem para você. Ele é desconfiado e não gosta de estranhos, apenas por isso. Vou ficar bem, tudo bem?

Assenti. 

— Posso? — perguntou Lance e eu assenti mais uma vez.

  Desferiu mais um beijo em minha testa e me deixou sozinha no quarto. 

𝚃𝙷𝙴 𝙰𝙱𝚂𝙾𝙻𝚄𝚃𝙴Onde histórias criam vida. Descubra agora