3. Sobre cereais e histórias

1.3K 189 39
                                    

— Eu tava cansada de dormir com a tia Tee e a tia Yuki, elas roncam mais do que a mamãe Becky. E o cereal tinha gosto de peixe. 

Essa é a primeira coisa que Emily diz quando entramos na minha casa. Ela tira seus sapatinhos dourados antes de se jogar no primeiro sofá que encontra, sem que seja necessário eu falar uma única palavra. Se fosse em qualquer outra circunstância eu consideraria este um comportamento admirável em uma criança, mas algo em sua postura me incomoda. 

— Tee e Yuki moram juntas? — Rebecca pergunta, enrolando uma mecha de cabelo nos dedos. Leva uns instantes para entrar, como se precisasse de algum tipo de aprovação. Ela tenta disfarçar a curiosidade de conhecer o lugar, mas o movimento de seus olhos a trai. 

Tee é outra das minhas três melhores e possivelmente únicas amigas. Nos conhecemos desde crianças, crescemos em casas vizinhas e ingressamos na mesma faculdade. Ela é uma figura conhecida na Diversity, tentei empregá-la como minha secretária no ano passado, mas nós duas sabíamos que isso era muito pouco para ela. 

Já Yuki é alguma garota recém empregada na Pop que eu não conheço muito bem, mas posso garantir que assinei sua contratação meses depois da demissão de Tee. 

— Elas se casaram depois de vocês — Emily responde com uma espreguiçada.

Busco o contato visual de Rebecca. Ela também deve estar exausta desta história, cada frase da pequena nos deixa mais confusas e enfurecidas (estou falando por nós duas porque, embora minha estagiária não tenha emitido nenhuma opinião rude desde a chegada de Emily, certamente ela gostaria de estar em casa nesse momento). 

— Emily, o que você quis dizer quando falou que não sabíamos de nada? — minha funcionária indaga.

Ela parece dez por cento mais à vontade agora. Está sentada na ponta do sofá, como um bichinho acuado fora de seu habitat, mas parou de mexer nos cabelos. É um contraste engraçado com a criança esparramada no sofá, agindo como se tudo fosse tão...

Familiar

É isso o que está me incomodando em Emily. Parece que ela já conhecia a minha casa.

— A tia Kade disse que eu ia viajar muito longe — a garotinha começa. Ela ergue os cotovelos e se senta, alternando os olhares entre mim e Rebecca. — É que eu tava com tanta saudade...

Seus olhinhos se enchem de água, mas ela espanta as recém lágrimas com as costas da mão.

— Então você não é daqui — eu constato, tentando não olhar para seu rostinho assustado. — Você veio de onde, e por quê?

Rebecca me lança um olhar repreensivo. Dou de ombros, eu sei que não é assim que se fala com uma criança, mas não conheço o jeito certo! Aliás, a garotinha não parece se incomodar, muito pelo contrário: age como se tudo fosse normal. E malditamente familiar. 

— Promete que não vai brigar comigo, mamãe?

Inspiro fundo. Eu não sou a mãe dela, que inferno! E eu quero muito brigar porque estou cansada. Mas mesmo querendo jamais conseguiria. Ela é lindinha demais para que eu consiga brigar. 

— Ela não vai, querida. Você pode contar — Rebecca responde por mim. — Conte o que está acontecendo, nós precisamos saber para te ajudar.

— Lá no futuro é muito ruim, mamães. — Seus olhos voltam a encher de lágrimas, que ela desiste de conter. — Vocês viraram estrelinhas e eu fiquei sozinha, e os tios são legais, mas eles não são vocês. Eu queria vocês de novo, porque não gosto de cereal sabor peixe e ninguém conta as histórias como a mamãe Freen. 

Uma casa no CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora