21. Sobre café com bile e uma funcionária metida

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Lembra quando eu disse que deitar na mini cama de Emily seria confortável e não traria dores nas costas?

Eu menti.

O primeiro pensamento que me ocorre quando acordo é de que nunca mais vou conseguir me levantar daqui. Sinto muito por interromper o momento emocionante da noite anterior, mas a verdade é que estou em tiras e agora só consigo desejar o belo comprimido de analgésico guardado em algum lugar da cozinha. 

Me levanto com todo o cuidado para não acordar as duas damas ao meu lado. Rebecca está ainda mais torta do que eu, suponho que também terá problemas ao levantar. Não sei ao certo em que momento caímos no sono, mas a boa dose de emoções nos deixou exaustas.

As escadas nunca pareceram tão distantes como nesse momento. Meu tronco não consegue estender completamente, talvez a senhora rabugenta que habita em mim tenha decidido se exteriorizar a ponto de me deixar corcunda. Levo minutos eternos para descer os degraus e encontrar o sagrado baú de remédios, o desespero é tão grande que engulo a cápsula sem um gole de água. 

O conteúdo raspa minha garganta. Estremeço com a sensação, mas suspiro de alívio ao saber que meu corpo tornará a ser jovem dentro de meia hora. Caminho corcunda pelo cômodo, numa tentativa desastrada de preparar a mesa para quando as duas dorminhocas levantarem. 

Com o remédio em seu devido lugar no estômago, sobra espaço para pensar sobre ontem. Queria poder prolongar a folga coletiva, contudo as milhões de mensagens no meu celular denunciam que será impossível. Empresas e funcionários estão cobrando pela volta, que gente é essa que não gosta de uma folga inesperada?

Provavelmente a explicação para isso é: eu demito todos que não tenham o perfil de workaholic. 

Alguma coisa parece cair no andar de cima. Escuto o xingamento baixo de minha estagiária acompanhado por passos. Ela não demora a surgir na minha frente, seu rosto contorcido em uma careta e as mãos apoiadas na lombar. 

— Bom dia, senhora Sarocha. 

O tom dela me faz estremecer. Não somente por ter voltado a me chamar da maneira formal, mas a rigidez em seu timbre parece cortar meus ouvidos. 

— Você sabe que não precisa mais me chamar assim — falo baixo. Levo as mãos nos lábios automaticamente, mas retiro antes que ela note. 

— É melhor evitar, não quero me confundir na frente do pessoal da empresa. — A mulher puxa uma cadeira com dificuldade. Um estouro seco provém de sua tentativa de sentar. 

Me sirvo do café que acabei de preparar. O mau pressentimento cresce dentro de mim e forma um nó pior do que aquele provocado pela cápsula do analgésico. 

— Você está bem?

— Minha coluna se parece com a de uma centenária — Rebecca resmunga com um afago na própria lombar. 

— A minha também. Tem analgésicos na mesa. — Aponto para a cartela próxima à mulher. Tento gritar para minha mente que as atitudes dela são perfeitamente normais, considerando o dia que tivemos. 

— Obrigada — minha estagiária responde sem o tom aveludado de ontem. Pega um dos comprimidos e o engole junto ao achocolatado que deveria ser de nossa filha.  — Acha que devemos deixar Emily com Jim hoje? 

— Para ser sincera, acho que ir para a aula pode distrai-la. Temos que mostrar a ela que não precisa ter traumas com a escola. 

Ela assente. Até a conversa sobre Emily parece estranha, como se de repente houvesse um muro entre nós. 

— Queria poder levá-la a uma psicóloga, mas é impossível que a pessoa ajude sem saber a história da viagem no tempo. 

 Impossível é olhar para esse rosto normalmente tão expressivo e não conseguir decifrar o que tem nele, é o que eu gostaria de dizer. Em vez disso, opino:

Uma casa no CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora