27. Sobre o tempo

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Poucas coisas na vida me convencem da real necessidade de praticar exercícios físicos. Eu conheço a importância para o bem-estar do sistema cardiorrespiratório, ósseo e muscular, mas isso nunca me motivou o suficiente para durar em qualquer academia ou aula de dança. 

Carregar uma criança de quinze quilos por um parque de saltos altos é uma das coisas que me fazem repensar sobre minha vida sedentária. 

— Tem certeza de que não quer que eu a leve, Freen? — Rebecca me pergunta pela centésima vez em um curto espaço de tempo.

— Não... eu... consigo... — respondo entre lufadas de ar. 

Ela abre um sorriso divertido. O sol começa a cair no lado oeste do parque, há um movimento intenso de pessoas voltando para suas casas. Nossa pestinha não aguentou tantas horas de brincadeira e caiu no sono antes que chegássemos ao carro.

— Você não está fazendo isso para me mostrar que é forte, né? 

— Não — resmungo com um muxoxo. Mas é claro que essa é minha maior motivação. Quero mostrar à ex-estagiária que ela não é a única forte aqui, muito embora seja bem mais fisicamente ativa do que eu. 

— É que você não está com os sapatos mais adequados para isso — ela insiste. — Estou com medo que torça o tornozelo e vocês duas caiam no chão. 

Emily escorrega alguns centímetros pelos meus braços, como que para provar o argumento de sua outra mãe. Preciso fazer um movimento para segurá-la mais forte. 

— Eu sou muito habilidosa com saltos, Rebecca. Comando a Diversity em cima deles todos os dias. 

— Mas a Diversity não adormece repentinamente no meio de uma brincadeira — ela tenta mais uma vez. Ahg, esse é um momento no qual eu gostaria de ser menos teimosa. Adoraria entregar nosso chumbinho para que seus braços fortes carreguem sem nenhuma dificuldade, mas não vou dar o braço a torcer. Não é possível que eu vá falhar, só faltam alguns metros para chegar ao carro. 

— Eu consigo! — exclamo em tom de ponto final. Ela entende o recado e segue caminhando silenciosamente ao meu lado. 

Por mais que não diga uma palavra, percebo seus olhos atentos se dividindo entre o montinho amarelo em meus braços e meus passos vacilantes de salto. Quando tropeço em uma pedra, sua mão se move involuntariamente na direção da minha cintura, mas consigo recuperar o equilíbrio e colocar minha dorminhoca sã e salva no banco de trás. 

Tiro os sapatos para dirigir. Rebecca se acomoda no banco do carona, dessa vez não coloca nenhuma música. Além de que seria uma poluição sonora misturada ao ronquinho de Emily,  não temos clima para escutar nada. O dia divertido não apaga o fato de que há uma quarta presença dentro desse carro, tão invisível quanto inquietante.

— Você quer jantar lá em casa? — arrisco perguntar antes de dar partida. — Podemos cozinhar alguma coisa. 

Ela me encara de lado, tento adivinhar se vai aceitar ou inventar uma desculpa. Um movimento sutil de aceno me faz sorrir por dentro. 

— Eu adoraria, Freen. 

— Se quiser, pode dormir também. — Mordo minha língua. — Sabe, talvez seja mais seguro, Pode ficar tarde para voltar sozinha.

Minhas bochechas enrubescem como as de uma criança envergonhada. 

— É, acho que vai ser mais seguro — Rebecca murmura com um olhar novo. Não se parece com nenhum outro que ela já me lançou. Há algo mais profundo nele, um mistério que se divide com melancolia e outro sentimento, quase um incêndio. 

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