25. Sobre amar incondicionalmente

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— Mamãe?

Acordo com batidinhas em meu rosto. Não sei em que momento da madrugada consegui pegar no sono, minha cabeça pesa como alguém que esqueceu de tomar água há dias. 

— Deixa a mamãe dormir mais um pouco — sussurro para a criaturinha arregalada que insiste em me cutucar. Tento fechar os olhos, mas agora que a nuvem de sonolência dissipa e clareia meus pensamentos, é impossível dormir. 

— Mas já são dez e meia! A gente tá atrasada!

Coço minhas pálpebras. Analisando melhor, percebo que minha criança está vestida com uma tentativa de uniforme. Os botões estão fechados aleatoriamente, a saia parece ter sido pisoteada por um búfalo e um rabo de cavalo torto adorna sua cabecinha preocupada.

— Hoje não vamos fazer nada — murmuro para o tornado humano. 

O único momento pior do que o dia de uma Grande Notícia, é o dia seguinte a ela. Quando você acorda feliz por um milésimo de segundo, antes de se lembrar que seu mundo virou de ponta cabeça no dia anterior e você desejaria ficar em sono profundo pelo resto da eternidade.

— Mas mamãe, se eu não aprender a ler, não vou ser a herdeira — a pequena responde em indignação. — E eu quero ser rica que nem você. 

— Não é um dia sem estudos que vai deixar você burra, princesa — Abro um sorriso cansado. Essa pilantra tem o poder de me fazer rir até no fundo do poço. — Amanhã você recupera.

— Amanhã é sábado, mamãe.  —Ela bate na própria testa como se tivesse ouvido a maior estupidez humana. 

— Parabéns, ganhou um fim de semana prolongado — tento convencê-la. Não é possível que até minha filha de cinco anos esteja se tornando workaholic. — Por falar nisso, tenho boas notícias.

A pequena me olha com curiosidade. Sua respiração faz cócegas em meu nariz. 

— Rebecca nos convidou para passear no parque amanhã — quebro o suspense antes que os olhinhos saiam de órbita. 

Um jato de euforia faz Emily pular por cima de mim. Ela me enche de beijos frenéticos e gritinhos empolgados. Ignoro o fato de que ainda não respondi as milhares de mensagens de Rebecca e não sei como vou encará-la amanhã sem me despedaçar. 

— Eu tô morrendo de saudade da mamãe Becky!

— Eu também  — murmuro. É terrível a sensação de sentir saudades e medo de encontrar alguém na mesma proporção. 

— Mas você viu ela ontem! — A pirralhinha me encara com um sorriso cinicamente familiar.

— E daí? Sou proibida de sentir saudades? — Exagero na expressão indignada, somente para esconder como me sinto por dentro. Um adulto facilmente perceberia que estou me esforçando ao máximo para não me desintegrar na frente dela, mas a inocência do meu serzinho a impede de perceber certas coisas. Ou ela é tão boa em fingir quanto eu. 

— Não, mamãe! Você é boiola — Emily rebate com uma gargalhada. — O que a gente vai fazer hoje?

— Gostou dessa palavra, né? — resmungo de mentirinha. — Vamos fazer o que você quiser. Dei folga a Jim, vamos ter o dia todo para nós duas. 

Percebo que sua respiração altera de maneira leve. Ela me lança um olhar de lado, como se estivesse me analisando minuciosamente.

— A gente pode ver filme?

— Você odeia todos os filmes — desabafo com um muxoxo. Nunca vi uma criança no mundo odiar animações, mas aparentemente as crianças do futuro não assistem mais nada em 2D.

— Eu gosto daquele que os brinquedos falam — minha pequena responde. Continua com seus olhinhos misteriosos. Minha nuca se arrepia com sua expressão investigativa. 

— Então é o que vamos ver mais tarde — decido antes que ela mude de ideia sobre o filme. — Coloque seus pijamas de volta, vamos dormir mais um pouquinho. 

— Por que a gente vai ficar em casa hoje, mamãe? Você tá doente?

Ela coloca uma mãozinha em minha testa. Parece alarmada, o que me deixa ainda mais triste.

— Não estou, filha. Só queria passar um tempo com você. 

Ficar com Emily é como fugir da realidade. Com ela, o tempo passa mais rápido e minha mente voa para lugares que nenhum adulto consegue alcançar sozinho. Se vou morrer tão nova, quero aproveitar ao máximo a minha remelentinha, antes que vire uma adolescente rebelde. 

Deixo-a se aninhar em meus braços para mais uma soneca, ou tentativa de uma. Permito-me relaxar com sua respiração infantil, mas o torpor logo passa e dá lugar ao medo de abandoná-la pela segunda vez. 

A respiração tranquila se transforma no familiar trator. Por que a vida me trouxe um presente tão lindo, se vai me arrancar desse momento tão rápido?

Eu nunca quis morrer, sempre tive o sonho de ser longeva. Mas também nunca tive medo da morte, porque não havia ninguém com quem me preocupar. Agora tem um pequeno indivíduo que precisa de mim, e saber que vou deixá-la para trás é pior do que qualquer outra dor. 

Emily solta um ronco endiabrado. Abro um pequeno sorriso, é quase como se o inconsciente dela soubesse que precisa me fazer rir de alguma forma. 

— Cara de anjinho, garganta do capeta — sussurro com um beijo em sua testa. — Eu te amo, filha. 

Levo a mão à boca no mesmo instante que a frase se forma no ar. Saiu tão fácil, tão despretensiosamente... como se sempre estivesse esperando o momento de ser dita.

Minha pequena roncadeira coça os olhinhos. Ela pisca algumas vezes para mim, ainda perdida em algum lugar entre os sonhos e o mundo real. 

— Mamãe? Eu tive um sonho engraçado. 

Rio de sua fala embolada. O uniforme está ainda mais amassado, alguém não me ouviu quando pedi para colocar os pijamas novamente. 

— Aposto que foi com tratores. 

— Dããã! Essa piada não tem mais graça — ela resmunga com uma risadinha e recosta a cabeça nos meus braços. —A gente tava deitada assim, e você falava que me amava.

Meus olhos se enchem, mas eu não dou a mínima.  Faz parte da nova versão Sarocha Sentimental. Por que guardar minhas emoções, se posso me arrepender depois por não ter dito tudo o que eu queria?

Não tenho o luxo da desculpa do "tarde demais", porque conheço o meu prazo. 

— Não foi um sonho, princesa. Eu falei que te amava, e falo de novo para você ouvir acordada. Eu te amo. 

A sonolência dá lugar à gritaria tão rápido que me pergunto como funciona a bateria de minha filha. Rio de sua risada sincera e sinto cócegas quando ela cobre meu rosto de beijos e abraços. 

— Eu te amo, te amo, te amo, mamãe!

— Só não pense que isso te dá passe livre para ficar sem escovar os dentes — finjo um tom mandão que sei que não tenho com ela. — Estou sentindo seu bafinho de longe. 

Gargalhadinhas infantis me impedem de sucumbir com minhas próprias lágrimas. 

— Você também tá com bafo, mamãe. 

— Eu não tenho isso — respondo com uma careta enojada. — Meus dentes são blindados. 

— É verdade! — ela concorda com o sorriso mais doce do mundo. — Você e a mamãe Becky são as mais cheirosas, lindas e inteligentes do mundo todo. Quando eu crescer, quero ser igual a vocês duas.

Fecho os olhos com tanta força que sinto algum vaso pequeno se romper. Eu não vou estar aqui para ver isso. 

— Você vai ser muito melhor, meu amor — sussurro, escondendo meu rosto. 

Eu, Freen Sarocha Chankimha, jamais admitiria a superioridade de qualquer outro ser na Terra em relação a mim.

Mas Emily (e Rebecca... Shh, essa parte é segredo) é capaz de fazer com que eu deseje para ela muito mais do que um dia eu sonharei em ter.

Acho que isso é o significado de amar incondicionalmente.

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