20. Sobre uma casa no Céu

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A melodia de alguma canção infantil chega aos meus ouvidos antes que eu consiga me levantar. Não sei que tipo de magia Rebecca fez comigo, mas o beijo me tirou toda a força que eu tinha. Esfrego o rosto numa tentativa de trazer um pouco de lucidez à minha mente, mas parece que o cérebro esqueceu de comandar minhas pernas e deixou essa tarefa para o meu inútil coração.

Por baixo das notas desafinadas de minha estagiária, porém, o som do chorinho de Emily surge como o combustível que faltava em mim. Espanto a dormência nos lábios com um pigarro e me levanto para descobrir o que está havendo com nossa pestinha. 

A porta do quarto está entreaberta. Os olhos da mulher fitam o vão quando me aproximo, parecem pedir socorro. Nessa curta distância, o choro de Emily fica mais evidente, assim como a falta de talento de minha funcionária para o meio musical. 

— Sua mãe canta tão mal que está te fazendo chorar? — pergunto à coisinha febril amontoada na cama. Seus braços estão entrelaçados em Rebecca como alguém que segura uma boia salva-vidas.

— Você não é a pessoa mais afinada — a mulher alfineta. Seu tom está diferente, mais suave que o normal. 

Me aproximo das duas sem muita cautela. Preciso me espremer para caber na ponta esquerda da caminha, mas a sensação de tê-las tão perto é confortável demais para que eu me importe com futuras dores nas costas.

— O que aconteceu? — Levo uma mão à testa da pequena. Não está mais fervendo. 

Isso me permite relaxar um pouco. A ausência da febre é um problema a menos, mas o beicinho que se forma em seu rosto me mostra que a noite vai ser longa. 

— E-e-eu... — Emily tenta dizer. Um soluço a interrompe, ela precisa inspirar fundo para retornar à calma.

— Shhh — Rebecca sussurra com um beijo no topo da cabecinha suada. — Estamos aqui com você, princesa. 

Uma bolota de catarro se desprende do nariz da criança. Tiro o fluido com minhas próprias mãos sem nem raciocinar o que estou fazendo. Só me dou conta quando vejo o rastro no short do meu pijama, mas não sinto um pingo de nojo. 

O tal do instinto materno trabalhando mais uma vez.

— É tudo culpa minha, mamães. 

A pequena agarra a gola do meu pijama com desespero. Seus olhinhos se enchem e o choro toma uma forma assustadora. Consigo sentir a dor do meu serzinho sair de uma vez só, como uma mangueira entupida que finalmente voltou a funcionar. 

Rebecca aperta o abraço. Nos encaramos sem saber o que dizer para acalmar a coisinha em colapso, parece que nunca estamos perto o suficiente. Nos grudamos numa tentativa de formar um ninho de proteção, mas nada consegue cessar esse choro sentido. 

— O que foi, filha? — pergunto tão desesperada quanto a pequena. — Por favor, fale com a gente.

— O carro... Eu só queria... e-eu queria... — ela gagueja entre arfadas. Passa as mãos no rostinho molhado antes de tentar novamente. — Queria ir com vocês. 

— Você queria ter ido na ilha com a gente? — Rebecca pergunta. Seu tom sai incerto, nós sabemos que não se trata disso. — Se for, podemos ir de novo, neném. Você não precisa ficar assim. 

A cabecinha de Emily balança em discordância. Percebo que se esforça para não cair em outro acesso incontrolável. 

— Não é isso, mamãe.

— Pode nos contar o que é? — Aperto sua mão de forma encorajadora. O bolo de palavras presas na garganta da pequena é quase visível. 

Ela inspira fundo, seus lábios tremem quando faz isso. Parecem exaustos de tentar formar sílabas diante de tanta bagunça. 

Uma casa no CéuOnde histórias criam vida. Descubra agora