Quinze

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     Meu avô passou o indicador pela língua e virou a página. Usava óculos de leitura grossos e seus pés estavam sobre a mesa de centro.

- Vós me chamais Mestre e Senhor, e dizeis bem, porque eu o sou. – Começou sua leitura diária. – Ora, se eu, Senhor e Mestre, vos lavei os pés, vós deveis também lavar os pés uns aos outros. – Mudei o canal da televisão, que começava o noticiário. Odeio jornais; são sempre uma sequência de tragédias, e já tenho suficientes em minha vida. – Porque eu vos dei o exemplo, para que, como eu vos fiz, façais vós também. – Mudei novamente de canal. – Uma pergunta conhecida de todos os cristãos é: "O que faria Jesus?" A verdade gloriosa da questão é que já temos muitos exemplos na Bíblia que nos guiam. A resposta curta é viver em amor e harmonia com o próximo, a ponto de que causar mágoa a outros seria impensável. – Mudei de canal novamente, saindo do programa de leilão de joias. – Cristo, embora Filho de Deus, humilhou-se lavando os pés daqueles que a sociedade considerava indignos. Você conseguiria amar tanto aos outros? – Olhei para meu avô, que ainda encarava sua Bíblia gasta. Ele estava cultuando sozinho, embora eu sempre lhe desse ouvidos, fingindo que não.

- Às vezes é até difícil amar. – Disse de forma retórica.

- Eu também acho uma missão difícil amar você às vezes, querida. – Fingi não achar graça.

- Se não me engano, meu mano Jesus fala algo sobre isso. – Meu avô fez careta; ele odiava quando eu dizia "mano Jesus" ou qualquer outra gíria. O que era meu principal incentivo para fazer. – Não ser servido, mas servir ao próximo. Esse trecho ilumina bem isso.

- Jesus, não nosso mano. – Corrigiu-me. – Ele é o nosso exemplo para viver cada dia. Como pode alguém, sendo Deus, lavar os pés dos discípulos?

- Conheço vários homens que não lavam nem os próprios pés. – Mudei de canal novamente. – Falando nisso, seu filho veio hoje?

Meu avô riu, tirando os pés da mesinha para se levantar. Estava guardando sua Bíblia, pois seu devocional tinha acabado.

Eu tinha acabado de chegar do trabalho, ainda usava tênis e uniforme. Me joguei no sofá onde meu avô estava e decidi que não sairia. Meu professor estava de atestado para uma cirurgia, então estava livre de Metodologia Científica pelas próximas duas semanas. Estava torcendo para não haver reposição, pois isso prejudicaria as férias que estavam próximas. Faltavam quase dois meses. Meu TCC estava parado, aguardando a avaliação do meu orientador para que pudesse prosseguir com as correções.

Quarta-feira parada por aqui.

Estava tão acostumada com a rotina corrida que já me sentia ansiosa por estar parada. Era quase uma culpa na minha mente por meu corpo estar descansando no meio da semana.

- Eu nem vou comentar sobre o fato de você ainda não ter tomado um banho. – Sorri, revirando os olhos.

– Eu estive no ar-condicionado o dia inteiro. Ainda não estou matando ninguém com meu cheiro, então não tem motivo para reclamar.

– Ele disse que viria agora à tarde para me levar ao culto, mas até agora nada.

Saquei meu celular do bolso e escrevi uma mensagem para meu tio, perguntando se ele viria. Meu avô estava esperando por ele; se não viesse, não havia motivo para o velho se arrumar para o culto. Ele respondeu logo em seguida, dizendo que não poderia buscar porque estava em outra cidade, mas que levario de volta para casa.

Suspirei. Tudo eu nessa casa. Indiretamente, meu tio me intimou a levá-lo.

Levantei do sofá, espreguiçando-me.

- Vou tomar banho e vamos ao culto.

- Não sei qual das duas coisas mais me surpreende, querida. – Revirei os olhos, indo me aprontar.

O fato de estar parada em casa me deixava entediada e ansiosa. A igreja não era o lugar mais divertido, mas quem sabe eu não encontraria Pedro por lá.

Corações em Conflito: Romance CristãoOnde histórias criam vida. Descubra agora