Eu estava quase me formando em Letras, não por escolha, pois o mercado de trabalho nessa área não era dos melhores, mas porque foi o único curso para o qual minha nota de corte me garantiu uma bolsa integral.
Não quero menosprezar a área.
Eu até gosto da prática de leitura, mas todo prazer que se torna trabalho acaba ficando maçante. Foi com o curso que consegui um estágio nos Correios, para manuscritos. Ao final do meu contrato de um ano e meio, consegui uma oportunidade dentro da empresa. Atualmente, estou em experiência em um cargo de área divergente, mas só de ganhar como efetiva, já está ótimo. O vale-alimentação de mil reais ajuda a amortecer todos os momentos de pressão, exaustão e aqueles que ferem pelo menos dois direitos trabalhistas.
Meu avô dizia que a bondade de Deus me havia colocado naquele lugar.
Sendo assim, eu temia muito pela maldade do Criador comigo. Às vezes, até me perguntava se aquele já não era o início dos meus pecados sendo pagos.
Não que o trabalho fosse ruim, mas lidar com atendimento ao público era uma penitência das grandes.
- Escuta, Roberta. - Meu supervisor chamou minha atenção enquanto eu assistia a um TikTok pelo computador da empresa. - Você viu minhas chaves por aí? - André perguntou, enquanto abria algumas gavetas da bancada. Ele era um ótimo chefe, mas às vezes me fazia submeter a funções ridículas, como cuidar do seu afilhado enquanto ele fazia algum trabalho importante, como ir à alfaiataria.
Contudo, André era flexível com meus erros e atrasos, então eu não podia reclamar.
Eu atuava na área de logística de entregas e devoluções de mercadorias, mas quando se aproximava do horário de almoço da recepcionista, eu a cobria. Eu fazia minha pausa ser a última do expediente para poder sair uma hora mais cedo.
- Você pode ter esquecido no restaurante de novo. - Sugeri, e algo em André confirmou a hipótese.
- Você pode buscar para mim? - Levantei uma das sobrancelhas em deboche, mas ele não retirou o pedido e não parecia se tratar de uma brincadeira. Levantei-me derrotada por ter que sair do conforto do ar condicionado e me submeter ao sol escaldante. A cada passo, sentia o sacrifício do trabalho árduo me matar aos poucos, mas quando coloquei o primeiro pé para fora dos Correios, eu podia garantir que, se jogassem terra por cima do meu corpo, o excelente trabalho de um coveiro teria chegado ao fim.
Fiz uma careta de desaprovação ao calor.
- Eu odeio meu trabalho. - Resmunguei com a mão na testa para aliviar a claridade nos olhos.
- Eu ouvi isso! - André gritou de dentro da loja, e eu me virei para sorrir amarelo para ele.
A travessia da rua foi tranquila pela baixa movimentação do horário de almoço. Cumprimentei a dona do restaurante, que era nossa vizinha de frente, e conversamos um pouco sobre assuntos genéricos, como o tempo quente e como o André era esquecido. Vânia era uma ótima pessoa para se conversar nos intervalos, e às vezes ganhava uma sobremesa que sobrava. André tinha me feito sair do ar condicionado, então ele que pagasse meu salário para bater papo com dona Vânia. Ela sempre me atendia com gentileza e lembrava bastante a aparência e o jeito de uma avó.
- E os pretendentes, dona Vânia? - Ela riu, colocando a mão na boca. - Com uma mão tão boa, aposto que não deve faltar homem. - Eu não era habituada a entrar nesse tipo de assunto, mas com dona Vânia era diferente. Eu me sentia à vontade para falar sobre qualquer coisa. Amava seus comentários que me tiravam algumas risadas, deixando o dia um pouco mais leve. Todo mundo deveria ter alguém assim.
- Pretendente tem de sobra, mas nada de um homem bem macho.
- Homem bem macho? - Achei graça no modo como falou, sendo ela uma senhora de idade. Aparentemente, até ela andava insatisfeita com o sexo oposto.
Eu não havia mencionado, mas domingo à noite, eu havia discutido com meu avô por não querer ir ao culto participar de algo dos jovens, que foi recepcionar o novo líder. Uma bobagem do senhor José.
Meu avô não tinha do que se queixar.
Ele sabia da minha rotina exaustiva, então sempre me exigia como uma tarefa irrevogável que comparecesse pelo menos uma única vez aos cultos durante a semana. Eu fui à escola dominical mais cedo. Se ele queria que eu também fosse à noite, onde teríamos um pregador de fora, meus tios iriam passar em nossa casa para me levar.
A questão não era ir à igreja ou quem iria me levar.
A questão em discussão era minha total falta de interesse pelo mundo religioso e pelas pessoas ali.
Vovô acreditava que, se eu fosse também nos dias em que não há culto, isso mudaria completamente meu modo de pensar. Uma coisa não tinha a ver com a outra. Na verdade, eu só ia aos cultos com o único motivo de agradá-lo e evitar novas brigas, pois eu prezava muito pela nossa relação.
Olha que maravilha, parece que não adiantou muito desta vez.
Eu não me sentia à vontade na igreja, no trabalho e, às vezes, nem em casa. Mas quando você não está à vontade dentro de si mesmo, é impossível sentir-se bem com algo. De repente, sentia como se uma brisa fria passasse por dentro de mim, trazendo ansiedade.
- Era só um homem da lancha de cabeça branca e pronto. Não é pedir demais, né, Roberta? - Sorri com o senso de humor atualizado da velha senhora. - E você? - Contra-atacou.
Engoli todos aqueles sentimentos para voltar ao assunto.
- Não, eu já conheci o homem da minha vida, obrigada. - Admiti. - Um velho rabugento, que faz meu jantar e lava meu uniforme. Não posso pedir mais do que isso. - Ela sorriu sabendo de quem se tratava.
- Como anda seu avô? - Vânia concordou comigo.
- Bem, se está quente, o problema é o frio. - Comentei sobre seu comportamento de problematizar tudo ao seu redor. - Mas, tirando isso, está saudável. Enquanto o senhor José estiver reclamando, eu sei que ele está muito bem.
- Honra teu pai e tua mãe para que teus dias sejam prolongados. - Comentou com um semblante pacífico.
- Acho melhor assinar logo um plano funerário então. - Vânia riu. - Quero que me vistam de branco. Não sou uma pessoa altruísta, então podem e devem chorar muito por mim, mas não ao ponto do rosto inchar. Chore com classe, dona Vânia, por favor.
- Mais alguma exigência? - Sorri, observando o movimento da rua voltando ao normal. Agora o calor não me irritava tanto, mas eu estava ansiosa para voltar para o ar condicionado.
- Irei pensar melhor na questão. Depois volto aqui com uma lista extensa. - Ela riu, atendendo um cliente que acabara de chegar para pagar sua conta e ir embora. Coloquei o pé para fora do estabelecimento e caminhei depressa para sair dos raios do sol o mais rápido possível. Os carros na frente do restaurante estavam estacionados na diagonal. Eu me mantive atrás de um deles, pronta para esperar um intervalo entre carros para fazer a travessia.
Acontece que, justo o carro em que estava escorada tinha um motorista com deficiências oculares que optou por afundar o pé na ré, me jogando de cara no chão quente.
Foi tudo muito rápido.
Eu estava em pé, encarando a frente de um carro vermelho, analisando se no intervalo entre ele e uma moto seria a oportunidade de atravessar a rua. De repente, eu estava no chão, a adrenalina no sangue não me deixando sentir quão quente o asfalto estava.
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Corações em Conflito: Romance Cristão
RomanceRoberta Leal se encontra em um momento de frieza espiritual. Após passar por dificuldades, ela perdeu a alegria de frequentar a casa de Deus. Atualmente, o que Roberta mais deseja é terminar a faculdade de Letras e sair da casa de seu avô, onde se s...