19. SNEHA

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— Você é louca!

Anjum e Sneha estavam montadas em Mahaanatam, cavalgando na direção contrária à capital, em direção ao mar. A ladra estava sentada na frente, segurando as rédeas do cavalo enquanto corriam pela floresta. A princesa que acabara de negar seu título estava atrás, com os braços abertos se equilibrando no animal em movimento.

— Eu sou louca? Não faz nem dois dias que finalmente pisei fora daquela torre depois de tantos anos presa, eu quero conhecer o mundo, não ficar pegando poeira em um haveli.

— Você sabe que vão me condenar por isso, não é?

— Sim, eu sei, mas também sei que você não faria nada diferente.

As garotas continuaram a viagem, passando por vilas para descansar e se alimentar, em cachoeiras e lagos tomaram banho e se hidrataram. Sneha foi aos poucos aprendendo coisas novas, descobrindo comidas, lugares, animais e tudo que o mundo podia ensinar. Até que depois de três dias de viagem elas chegaram à costa.

— Então isso é o mar…

As duas estavam com os pés descalços na areia, Mahaanatam olhando-as de longe ainda na floresta. O cabelo curto de Sneha estava balançando com o vento, ela sorria olhando para baixo vendo a água vir e bater nos seus pés.

— Você gostou? — Anjum perguntou também sorrindo depois de ver o quão a menina pareciA feliz.

— Você tem que parar de querer me agradar toda hora… Na última vila você passou em cada uma das casas perguntando se tinha arroz porque eu disse que estava com saudade de comer. Quando a gente parou na cachoeira e eu disse que tinha dias que não tomava banho com sabão, você subiu no Mahaanatam e foi buscar um. Mas de qualquer jeito... como eu sei que você não vai parar… obrigada por me trazer aqui e por fazer essas coisas por mim.

— De nada, menina. É incrível ver você descobrindo o mundo, cada coisa nova que você vê você fica tão feliz… eu adoro isso. E o mar é uma coisa nova até para mim.

Depois de um tempo em silêncio, ambas olhando para o mar, Sneha continuou.

— Não acha estranho?

— O quê?

— A gente se beijou.

Então as duas ficaram em silêncio, Sneha voltando a olhar para os pés enquanto Anjum olhava o mar até onde ele sumia no horizonte. Desde o dia que a garota tinha quase morrido as duas não haviam se beijado de novo, nem mesmo tocado no assunto. Mas enfim Sneha estava perguntando sobre e ela tinha que dizer o que achava.

— Eu já imaginava que você faria essa pergunta… Por ter ficado dentro da torre todo esse tempo ainda está aprendendo sobre tudo... também sobre você… Não, Sneha, eu não acho estranho. Na verdade eu sempre soube, sempre soube que não importava. Lembra quando me perguntou por que eu não tiro o niqab mesmo na frente de outras mulheres? Então… Mas você… você ainda está descobrindo o que amar sequer significa. E eu não me importo, Sneha, porque gosto de você, e te quero por perto, quero passar o tempo e a vida com você… e de verdade? Acho que você quer o mesmo, só não sabe expressar isso ainda… e está tudo bem, está tudo bem não saber, você pode descobrir aos poucos.

— Mas em todos lugares que nós passamos, Anjum, as garotas sempre estavam com um garoto, não tinha ninguém… assim…

— Nós estamos em todo lugar, menina… só estamos nos escondendo, temos que nos esconder o tempo inteiro. Aposto que pelo menos uma das garotas com garotos que nós vimos não ama ele de verdade, que teve que desistir do que sentia… mas eu não quero desistir, mesmo que tenha que fugir para sempre.

Então Sneha levantou o rosto, Anjum tinha tirado a parte da frente do niqab e sorria com o canto da boca para ela. Ela sorriu também, se aproximando e segurando o rosto da outra. Anjum passou o braço em volta de sua cintura.

— Posso?

— Pode o quê?

— Você sabe.

Sneha concordou com a cabeça, então a outra garota a puxou mais para perto e a beijou. Já que dessa vez Anjum não estava no leito da morte o beijo foi bem mais profundo, ela segurava forte a beirada da saia da menina, enquanto levou a outra mão até a nuca dela segurando forte seu cabelo.

As duas se afastaram e Anjum apertou as duas mãos de Sneha, olhando nos olhos dela.

— Minha menina…

— Você realmente nunca vai parar de me chamar de menina, né?

— Você sorri toda vez que eu falo assim, Sneha, acha que ainda não percebi que você gosta?

— O que quer fazer agora, Anjum? Já me trouxe até o mar, agora é sua vez de escolher.

A garota virou o rosto na direção do mar, parecia estar pensando no que ela queria, no que seria a partir de agora.

— Acho que dá para misturar os meus sonhos em um só…

— Como assim?

— Lembra? Tenho sonhos, mas nem tanto. Mais simples, por enquanto… Um lugar ensolarado, numa ilha…

— Ah tá, então agora voltou a querer uma ilha?

— Não, menina. Lembra quando me perguntou se me vingar do Império me deixava feliz? Acho que não me vingar, mas sim mudar, mesmo que agora seu irmão seja o imperador e mude algumas coisas, sempre vão perseguir gente como eu, gente como nós duas, a gente tem que mudar isso. E também, tenho mais um sonho, quero estar com você, quero você ao meu lado… e acho que dá pra juntar todos esses sonhos. No sul, a alguns poucos quilômetros da costa tem uma ilha, é um Estado tributário do Império mas eles estão lutando para serem livres. Podemos ir para lá, ajudar eles, sei que muitos outros grupos excluídos no Império vão para lá…

— Que eu me lembre… a música era: “Numa ilha, uma sanfona, bronzeada e solteirona”... — As duas então começaram a rir e Anjum passou a mão no cabelo de Sneha bagunçando ele.

— É, mas isso foi antes…

— Antes do quê?

— Antes de eu perceber que você não era tão insuportável assim…

— Insuportável? Eu? Nunca!

— Você roubou as minhas coisas!

— Acho que uma delas sempre foi minha… e é bem engraçado ouvir isso de uma ladra!

— Aiai, adoro você.

— Também te adoro… além do mais você meio que chama “estrelas” e eu queria ver as estrelas. Acabei aqui fugindo com uma.

Anjum então segurou a menina e a levantou, levando ela até o mar.

— Anjum! O que você tá fazendo?! ANJUM!

— Eu não te trouxe até aqui para você não entrar na água!

— Meu deus, é salgada!

— Você não sabia que era salgada? Você realmente precisa aprender muita coisa, Sneha.

— É que eu tenho uma péssima professora!

Então as duas se beijaram mais uma vez, enquanto o sol se punha no horizonte e o mar brilhava à sua volta.

Estrelas Flutuantes - Uma releitura sáfica de EnroladosOnde histórias criam vida. Descubra agora