Alguns meses depois…Sneha estava sentada na beirada do píer, descascando uma manga enquanto observava Anjum pescar sentada dentro do barco há alguns metros de distância. Assim que chegaram na ilha a garota descobriu que tinha outro dom além de roubar, ela aprendeu a pescar tão rápido e tão bem que logo pessoas de todo canto da vila começaram a procurá-la para comprar peixes e frutos do mar. Em menos de um mês elas abriram uma venda, durante o dia Sneha ficava cuidando da loja enquanto pintava algum quadro ou costurava alguma roupa para vender. Anjum cuidava da horta e da casinha que construíram atrás da venda, e de noite as duas iam buscar mais peixe para vender no outro dia.
— Quantos você já conseguiu? — a menina gritou para que a outra ouvisse.
— Deve ser uns 30! Acho que vou mergulhar, estou vendo uma lagosta, vou pegar ela!
Sneha observou enquanto Anjum tirou o seu niqab e pulou dentro da água. Não adiantava dizer a ela que já tinham o suficiente, a garota sempre ficava até tarde pescando, pegando cada vez mais, mesmo se não conseguissem vender.
— Quero manga…
Sneha tomou um susto, até hoje ela ainda não tinha conseguido se acostumar com as aparições repentinas da criança. Anjum havia pegado a invasora roubando a casa delas há quatro meses, ela já tinha percebido que alguém estava pegando alguns dos vegetais que colhia, mas nunca conseguia pegar quem era. Um dia decidiu não ir pescar durante a noite e esperou na cozinha escura aguardando o ladrão aparecer, então viu a sombra de um mini ser humano entrar pela janela e ir direto até o baú onde guardava as comidas.
- Sneha, agora! - Anjum gritou e a menina saiu do baú, agarrando a garotinha que tentava roubar.
- É uma criança! - A menininha se contorcia nos braços de Sneha, tentando se soltar do aperto enquanto chorava alto. Ela então mordeu a mão da garota, que soltou a menina pela dor fazendo com que ela fugisse. - Ai, doeu.
- A gente vai atrás da criança…?
- Sim, estou indo dar para ela um pouco do arroz que você cozinhou hoje… Acho que eu me simpatizo demais com esse tipo de garotinhas que roubam, sabe? Você deve até conhecer uma.
As duas descobriram que a garota vivia debaixo de um dos píeres da praia, em uma casinha de tábua improvisada. Os moradores da vila disseram que ela veio do leste do continente escondida em um navio, e desde então ficava roubando as casas durante a noite. Ninguém conseguia pegar ela, mesmo enquanto dormia a menina estava sempre alerta e no primeiro passo que ouvia ela fugia.
Anjum começou a levar para ela um pote com comida todos os dias, colocava um pouco do que cozinhara, uma fruta e às vezes um doce. Aos poucos a criança começou a se acostumar, no começo fugia, depois começou a esperar a comida sentada no píer, depois Anjum começou a encontrá-la em pé na porta de casa… Por fim a menina começou a comer e viver com elas. Em um dia de inverno, enquanto as garotas dormiam, elas sentiram algo deitar entre elas se enrolando no cobertor, desde então Nivya não saía mais de perto.
— Nivya, era para você estar dormindo.
— Eu ouvi vocês gritando… eu quero manga, me dá! — a menina estava puxando o pallu do sari de Sneha enquanto suplicava com o olhar.
— Niv, nós já te explicamos… quando quer algo o que você diz?
— Por favor… me dá manga?
Sneha deu a manga que havia acabado de descansar para a menina, que se sentou e começou a comer. Nivya devia ter uns 5 anos, falava pouco hindi por ter vindo de outro lugar, mas conseguia se virar, Anjum estava ensinando ela a ler e escrever. Quando não estava fazendo bagunça ou chilique era adorável, do nada aparecia na venda perguntando Sneha se precisava de ajuda, assustando a garota como sempre. Ela tinha um cabelo preto liso que ficava enrolado em um coque o dia inteiro ou virava uma bagunça. A pele dela era clara e amarelada, se queimava fácil na praia, toda hora pedia para Anjum passar óleo em seus braços queimados.
Aos poucos as três se tornaram uma família, uma família bem diferente, o povo da vila dizia, mas que sempre estava ajudando todos… e quando as vilas da ilha se reuniam para discutir os planos de liberdade contra o Império, Anjum e Sneha eram aquelas que tinham as melhores ideias, criaram planos com tudo que aprenderam no caminho até a ilha e aos poucos construíram a resistência.
O relacionamento delas continuou igual, não se diziam namoradas, muito menos casadas, mas eram parceiras e sabiam que podiam contar uma com a outra. Juntas criaram Nivya e o lar tão perfeito que nunca sonharam ter um dia.
Anjum continuou roubando, é claro, mas agora roubava do Império. Invadia navios que levavam suprimentos para a capital, se escondia em acampamentos para descobrir informações confidenciais e bolar os planos de ataque. Havia se tornado uma pescadora, espiã e estrategista incrível em tão poucos meses, provando que com oportunidade poderia ser algo além de uma ladra qualquer. Sneha quem pescava e cuidava da horta e de Nivya quando ela saía em alguma missão, torcendo para que a garota não fosse pega pelo exército, que não achassem as duas aqui escondidas nessa ilha. Talvez morreriam sem ver o país livre do Império controlador, mas lutavam para ao menos deixar um lugar melhor para Nivya e outras crianças viverem.
— Nivyaaa, olha o que eu peguei! — Anjum gritou depois de emergir na água, balançando uma lagosta com a mão.
— Que nojo! Não quero!
A garota então veio nadando até as duas sentadas no píer, jogando a lagosta em cima da madeira e rindo quando a criança pulou e se escondeu atrás de Sneha.
— Você não matou ela!
— Calma, Niv… A lagosta não vai te machucar… E Anjum, para de gracinha você sabe que ela tem medo.
— Tão fofinha minha menininha. — Anjum disse apertando uma das bochechas da garota — Vou matar a lagosta, tá? Não precisa ficar com medo. Só vim mostrar pra sua mãe como faz isso, se não vai acontecer a mesma coisa que semana passada…
— Você não consegue ficar um segundo sem zoar o meu desespero com a lagosta viva na venda, né?... Espera aí, “sua mãe”? Eu?
— É, eu estava pensando, meio que nós somos mães dela agora… ela não larga do nosso pé, não desgruda mais, não me deixa mais dormir agarrada com você tem sempre que se meter literalmente no meio... E fica feito uma gulosa correndo atrás da gente pedindo comida… por sinal isso ela puxou você.
— Você fala como se vocês duas não ficassem abraçadinhas toda vez que ela deita do seu lado… E eu nem falo o que ela puxou de você então, grande ladra Raatri Chor!!
— Olha, olha, que eu te jogo dentro dessa água.
Sneha tentou se levantar para correr, mas Anjum pegou os seus pés e a puxou, fazendo ela cair no mar. As duas começaram a jogar água uma na outra, enquanto Nivya observava elas, rindo alto do píer com as mãos e a boca todas sujas de manga.
— Se meu sari manchar por causa dessa água salgada você vai ter que comprar outro para mim!
— Eu compro, menina, compro tudo que você quiser... Nivya, tampa os olhos! — então Anjum puxou Sneha e beijou ela, passando a mão pelos cabelos que agora batiam no ombro mas tinham o mesmo cheiro de óleo de hibisco de sempre.
— Eca, nojo! — Nivya então jogou o caroço de manga que bateu bem na cabeça de Anjum.
— Ai… Nivya!
— Já falei para não dar beijo perto de mim, é nojento.
Anjum então foi em direção ao píer e puxou Nivya, segurando ela um pouco alto para não afogar, mas baixo o suficiente para se molhar até o pescoço. Era a vez de Sneha de rir.
E foi assim que elas viveram, naquela ilha como uma família, lutando por um mundo melhor e se esforçando uma pela outra. Anjum e Sneha viram Nivya crescer, mas continuar gulosa e com nojo de beijo, e se tornar uma ótima guerreira contra o Império…
Se a vida assim não era um grande sonho realizado, elas não sabiam o que era…
— Ah, mas eu meio que encontrei as “estrelas”… Uma até melhor que as que eu queria.
— E no final eu posso não ter conseguido roubar a coroa da princesa, mas agora a própria princesa é todinha minha.
Fim
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Estrelas Flutuantes - Uma releitura sáfica de Enrolados
RomanceSneha viveu quase 18 anos presa dentro de uma torre, convivendo apenas com sua mãe. Alguns dias antes de seu aniversário de 18 anos uma garota escala a torre e entra em sua casa, é Raatri Chor, a Ladra da Noite, a criminosa mais procurada e conhecid...