𝙸𝙽𝚀𝚄𝙸𝙻𝙸𝙽𝙾 |9

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  2275 palavras

A última vez que me senti assim foi há um ano, quando minha tia se atrasou para trazer minha receita e fiquei três dias sem meu remédio. Eu havia pesquisado na internet e lido que essa dor passaria quando eu me acostumasse com a ausência do medicamento, mas não conseguia conviver por muito tempo com essa dor insuportável.

  Minha nuca lateja incontáveis vezes por segundo e eu seguro com força as lágrimas que ameaçam vir, apressando meus passos ao passar pela praça, onde vejo uma tulipa vermelha. Essas flores em específico sempre me fazem lembrar dela, mas no estado em que me encontro, sem o efeito dos comprimidos, isso se torna muito mais nítido.

  No jardim da minha casa havia tulipas de várias cores, era a flor preferida da minha mãe, que acabou se tornando a minha também. Eu tinha preferência pelas vermelhas, foi a que eu peguei para colocar sobre o "túmulo" de Elise, minha boneca favorita, a mais amada. Eu fingia estar triste naquele dia, e coloquei na minha cabeça que a tulipa vermelha iria absorver toda a minha tristeza, e eu ficaria em paz depois do toque dela.

  Essas lembranças corroem o meu peito com tamanha crueldade. Um dos reais motivos de eu continuar com esse remédio não é apenas o meu alto controle, mas também como eles interferem na minha capacidade de lembrar do passado.

  Lembrar dói, eu detesto lembrar, detesto sentir a falta deles.

  E é isso que me motivou a continuar meu percurso até a farmácia do posto de saúde, que não estava muito lotada na parte da tarde, por isso fui atendida rapidamente.

— Cloxazolam para um mês, por favor. — Coloquei a mesma receita de sempre sobre o balcão.

  Minha tia ficava encarregada de renovar minha receita, mesmo estando longe. Ela sempre vem me visitar de seis em seis meses com um novo papel. Acho que se não fosse pelos remédios ela nem viria.

  Já faz anos que dependo emocionalmente desse remédio. Sinto-me outra pessoa nos poucos dias que fico sem ele, e isso é estranho. Queria poder me sentir bem comigo mesma sem precisar de medicamentos, mas não é o caso. Então basta só aceitar.

— Certo. — A farmacêutica me olhou com um semblante desgostoso estampado em sua feição.

  Depois de tomar um dos comprimidos, fiquei sentada no banco da praça aguardando fazer pelo menos um pouco do efeito. Foi o que aconteceu. Levantei-me para voltar para casa assim que minha cabeça parou de latejar e pude sentir que já tinha total controle dos meus pensamentos.

  Assim que entrei em casa, coloquei a minha tulipa roubada da praça em um vasinho com um pouco de água perto da janela, até que minha visão focou para o quintal da dona Lurci. A senhora estava mexendo naquelas caixas soterradas sob a mesa. Tenho muita curiosidade sobre o conteúdo escondido lá, por mais que eu já tenha uma ideia.

  Dona Lurci, a dois anos atrás, cuidava dos dois netos, Gaby e Elías. Eles deveriam ter entre 6 a 8 anos de idade. Ficaram só um ano aqui, por mais que Lurci não demonstrasse gostar muito deles, ela ficou super estranha quando eles foram embora do dia pra noite. Ela ficou dias procurando pelos pertences deles ao redor e no interior do pátio. Eles realmente perdiam muitas coisas. Ela não falou com ninguém por muito tempo, e sempre fez questão de me olhar intensamente, como se quisesse descobrir algo em minha expressão.

  Sempre achei que Lurci tivesse algo contra mim, pois desde o dia em que vim para cá, a velha vive me espionando com desgosto estampado em sua cara. Quando não está colocando passarinhos mortos em frente ao meu portão, o que muitas vezes levei como ameaça, mas nunca questionei. Para ser sincera, até achava engraçado o seu jeito meio doido.

"Querido Diário" de Lana BergerOnde histórias criam vida. Descubra agora